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Fliu: festa da chuva e da literatura no sertão

Fliu: festa da chuva e da literatura no sertão

Certamente você já ouviu uma música do Djavan que diz assim: “um dia frio, um bom lugar pra ler um livro…” Mas permitam-nos, com toda a licença também do célebre músico, fazer uso da liberdade poética e escrever:

“Um tempo frio, um bom lugar pra celebrar o livro”. Para começar, um trocadilho com a música “Nem um dia”, do cantor e compositor Djavan. Assim poderia ser o registro do dia em que a ilustríssima chuva chegou ao sertão em dia de Festa Literária de Uauá, trazendo consigo um tempo frio muito aconchegante. Contudo, através de uma programação diversificada e debates pertinentes para os dias atuais, o evento em si não foi nada frio, pelo contrário, se fez envolvente, poeticamente agitado, com o calor humano ímpar de quem sabe acolher bem.

Esse celebrar literário, de forma acolhedora e afetuosa, foi o clima que permeou a terceira edição da Fliu, um ambiente que o escritor e contador de histórias Giba Pedroza, que veio de São Paulo, afirma só ter visto em Uauá, no Semiárido baiano. “É uma festa para celebrar o livro, a leitura, a oralidade, o conhecimento, a troca de sabedorias. Muito feliz de estar aqui, é uma das feiras mais importantes que eu já participei. Eu tenho 35 anos de carreira literária, como contador de histórias, e nesses 35 anos eu nunca vi uma feira tão pulsante, tão verdadeira e tão forte, com a presença dessa cultura nordestina tão pungente”, destaca.

A poetisa, cantora e compositora recifense Luna Vitrolira também se encantou com a Fliu.
“Sempre quis participar, sempre quis visitar este território, que é um território histórico e acredito muito que a Fliu tem uma proposta diferenciada dentre os festivais de literatura e de fortalecer mesmo a nossa arte, a nossa palavra, nossa poesia, a cultura aqui no sertão e no Brasil”. A artista se apresentou no palco da Carreta Literária e também participou de uma mesa com o tema “Mulheres”. Nos dois momentos, ela declamou poesias sobre assuntos como empoderamento, violência contra as mulheres e gordofobia.

Luna fez questão de ressaltar que acredita na força da poesia e o quanto é importante espaços como a Fliu. “[...] quando a gente tem um festival que trabalha na base no afeto, a gente vê como tudo se irmana e como é poderoso, como é potente a forma como chega e atravessa as pessoas. E isso é a base do meu trabalho com a poesia, por isso que eu digo que uso a poesia como forma de me comunicar com o que é mais sensível nas pessoas”.

O debate da mesa sobre mulheres abordou temas como o machismo, a busca por autonomia das mulheres, gestão da carreira, processos criativos e desafios das plataformas digitais. A mesa contou ainda com a participação das artistas Isadora Melo e Sofia Freire. Os temas discutidos despertaram reflexões na artista visual e cantora Maria Clara Struduth, sobre a administração das atividades. “É algo muito difícil e a gente, às vezes, acaba não tendo tempo de se dedicar mais à própria criação, que pra mim é algo muito bom, mas eu me vejo perdida nesse tempo de rede social e que a gente tem que batalhar para estar alí à toda mostra, porque se você não tiver, você meio que é invisível para seu próprio público. As meninas falaram coisas que foram abrindo várias portas assim na minha cabeça, foi muito interessante!”, ressalta a participante.

“Quando a gente compartilha a experiência, tem a ver com empoderamento, representatividade, tem a ver com a gente trabalhar temas que são invisibilizados, que não são colocados em destaque na luz e que muitas pessoas se identificam e carecem de ouvir sobre isso, carecem de se perceber e encontrar nisso caminhos, de ser ser influenciada, de perceber que a gente tá lutando juntas para realizar nosso sonhos”, pontua Luna Vitrolira.

A Fliu pautou ainda o tema “Povos Originários”. Ao longo das discussões, os participantes dessa mesa, Gean Ramos Pankararu, o quilombola piauiense Mestre Naldo e o cantador de samba de boiadeiro Daniel da Quixabeira pontuaram a importância de reconhecer a riqueza cultural e os saberes e também alertaram da necessidade de proteção desses povos e territórios. “Que a gente possa, de alguma forma, ter a consciência da importância da preservação desses territórios, da cultura material e imaterial desses povos que, não apenas nos últimos quatro anos, mas com muita ênfase nos últimos quatro anos, sofreram diversos ataques. estamos sofrendo diversos ataques, mas esses ataques aos povos começou lá, há 522 anos”, afirmou Gean durante sua fala na mesa.

Em complemento ao assunto da proteção dos Povos Originários, Gean Pankararu destacou a questão do pertencimento, da ancestralidade viva e do compromisso que a sociedade precisa assumir. “O poder da palavra ancestral está na memória. E não é na memória ‘in memoriam’ [morta]. Não! É na memória agora. Eu não posso sair do meu território e esquecê-lo lá. O meu território sou eu, ele vai aonde eu tenho que ir.[...] A responsabilidade da manutenção e da existência dos povos é de vocês [sociedade], a partir das políticas públicas que vocês escolhem, dos políticos que vocês aprovam, como grande maioria [...] São vocês, vocês nos venceram em quantidade”.

Outra mesa da Fliu promoveu um debate sobre poesia, política, literatura e resistência. Como o tema já indica, não faltaram considerações a respeito do momento atual do Brasil. Os escritores e poetas Xico Sá, Antonio Marinho e Marcelino Freire conduziram um bate-papo bem humorado, mas com pitadas importantes de crítica social.

Como era de se esperar, os casos recentes de xenofobia contra nordestinos/as foi destaque nas falas dos convidados. Um debate que, para Antonio Marinho, precisa ser feito, porque é preciso ressaltar a relevância da região Nordeste. “Não adianta negar! O Nordeste faz parte desse país, e não só faz parte, é parte fundamental da solução do Brasil. Do ponto de vista da criação, do ponto de vista conceitual, de trabalho. O Nordeste levantou metade desse país com seus braços, mas hoje levanta também com sua inteligência, ganhando todas as olimpíadas de educação do Brasil, produzindo cultura, produzindo arte, apesar da negligência e até do combate criminoso por parte do Governo Federal contra nossas manifestações”, afirma Marinho.

Para combater essa xenofobia escancarada que houve durante e após as eleições, Xico Sá alerta para que a sociedade não feche os olhos, ou minimize a prática ao adotar o discurso de que é apenas bobagem. “Eu acho que o nosso papel nessa hora é nunca deixar barato. Porque pode dizer: ‘ah não, deixa esse povo aí, não dá moral pra eles’. Eu acho que não, porque é crime, não pode deixar banalizar e virar normal, porque isso não é uma piada, uma lorota, é um discurso criminoso!”.

Tanto esses debates proporcionados nas mesas da Fliu, quanto as apresentações artísticas e demais atividades da programação tornaram o ambiente do evento, de fato, muito acolhedor e diverso. Gente de todas as idades transitaram pelos espaços da Festa. Na visão de Xico Sá, “isso é o que tem salvado a literatura do Brasil, tem tirado a literatura da academia, da escola e tem jogado ela mais para a realidade. Aqui a gente estava falando sobre resistência, a importância do Nordeste em toda essa resistência política que a gente ainda tá vivendo. É uma dádiva pro escritor ter uma chance de eventos como esse”.

De acordo com o curador e coordenador da Fliu, Maviael Melo, o evento “botou na sua programação 50%, ou mais, de artistas de Uauá, então isso é muito importante. Trouxemos uma carreta literária com mais de dez mil livros [...]”, e, segundo Maviael, o que fica, ao final de mais uma edição é o “sentimento de agradecimento a todos os parceiros. Isso mostra que a arte permanece, a cultura, a poesia, a palavra e a política estão na resistência da arte. Muito feliz com tudo o que aconteceu, esperamos que tenha sido a terceira edição de tantas que virão”, projeta.

A Festa Literária deste ano teve transmissão online, mas aconteceu 100% presencialmente, entre os dias 3 e 5 de novembro e o homenageado foi o cantor e compositor uauaense Mestre Cavachão, que participou de algumas atividades da Fliu. O evento é apoiado por diversas instituições, entre elas o Governo do Estado da Bahia, a Prefeitura de Uauá e o Irpaa.

Texto e Fotos: Eixo Educação e Comunicação do Irpaa
 


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