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"A gente vive, infelizmente, o modelo de sociedade, onde você discutir gênero é uma ofensa a honra, aos bons costumes", diz Karine Pereira em entrevista sobre desigualdade de gênero

No dia 8 de março, comemoramos o Dia Internacional da Mulher, para lembrar das diversas lutas travadas, celebrar as conquistas e aumentar a conscientização em relação à contínua desigualdade de gênero, que em pleno século 21, ainda afeta tanto as mulheres.


Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, aponta que no Brasil, as mulheres se dedicaram aos cuidados de pessoas, como crianças e idosos, ou aos afazeres domésticos mais de 21 horas por semana, quase o dobro de tempo que os homens destinaram a essas atividades. Essa desigualdade é maior na região Nordeste.

O IBGE também apurou que no mercado de trabalho, as mulheres receberam, em média, 77,7% do que os homens receberam. Essa desigualdade é maior ainda nas funções e nos cargos que asseguram melhor remuneração.

Você já parou para pensar como acontece a divisão dos afazeres domésticos aí na sua casa? E no seu ambiente de trabalho, a desigualdade de gênero é um tema discutido?

Para ajudar nessa reflexão, convidamos Karine Pereira, ela que é mãe, empreendedora, artesã, jornalista, baiana e integrante da Rede Mulher Território Sertão do São Francisco.

 

Irpaa: Quais são os maiores desafios para garantir os direitos das mulheres em relação a divisão justa do trabalho? E como você avalia que as mulheres estão enfrentando essa luta?

Karine Pereira: Acho que um dos maiores desafios para alcançar esse direito da divisão justa do trabalho doméstico é mudar um modo e uma concepção dos papéis, do que é papel de homem, que é papel de mulher, que foi construído socialmente e está enraizado, principalmente, quando a gente fala que a nossa sociedade é patriarcal. Então, mudar essa concepção, essa compreensão do papel da mulher na sociedade, o papel do homem, essa construção social que se fez é um passo. Mas, eu acredito que é preciso também pensar ações estruturantes (…). Por exemplo, quando a gente fala de ações, a gente tem que pensar de forma mais contínua, como políticas públicas. A gente fala de questão de direitos, como é que a gente garante a divisão justa do trabalho doméstico quando é uma questão individualizada da mulher que tá dentro de casa, por mais que ela esteja na bandeira de luta de muitas organizações, movimentos sociais é muito tímido ainda o avanço para se buscar esse lugar de combater a divisão injusta, onde nós mulheres sempre arcamos com a maior parte do trabalho doméstico.

Então, é preciso sim ter políticas públicas e uma delas seria de educação, conscientização no processo formativo do ser humano, que já deve começar na infância. A gente não tem nas escolas, a discussão de gênero, a gente não conversa isso com as crianças no ambiente escolar, é muito difícil, muito raro, há muita resistência. A gente vive, infelizmente, o modelo de sociedade, onde você discutir gênero é uma ofensa a honra, aos bons costumes. É um grande desafio, tudo aquilo que está enraizado se não for cortado de fato pela raiz, não muda, fica no superficial, mas não significa que não tenha lutas, tem sim, tem muita luta de mulheres, tem muita luta de organizações populares. Não é de hoje que esse debate é feito, tem resultado, tem avanços, mas muito tímidos. Então, é preciso ir mais a fundo, buscando políticas públicas, principalmente, no âmbito da educação, na formação do ser humano.

 

Irpaa: Pesquisas mostram que o trabalho doméstico não remunerado, continua em mais de 80% nas mãos de mulheres. Para você quais fatores favorecem para continuidade desse cenário?

Karine: As pesquisas mostram uma realidade, que nós ocupamos a maioria do trabalho não remunerado. O que contribui para isso? Contribui com a forma como a sociedade se organiza e as crenças, a educação que a gente recebe e tudo isso é, digamos assim, ensinado para que mulheres entendam e compreendam que existe um papel para ela na sociedade. Esse papel não foi criado pelas mulheres, claro, porque nós mulheres não criaríamos esse papel de trabalhar sem ser remunerada, abrir mão da nossa vida, na maioria das vezes, para não generalizar, somos nós que abdicamos das nossas vidas para que o esposo trabalhe ou para cuidar dos pais ou para cuidar das crianças, dos idosos da família que chegam no colo das mulheres.

E esse trabalho, a gente sabe que na maioria das casas, principalmente, aqui do Semiárido não é remunerado, pelo contrário, a mulher cria um ciclo de dependência financeira e, muitas vezes, isso afeta tanto a saúde mental da mulher, que muitas vezes ela não se dá conta. Fatores que contribui para isso é a compreensão, infelizmente, que a sociedade tem e a construção social desses papéis, a gente tem isso muito forte e aprende dentro de casa, na família, qual é o nosso papel. Tem mudanças desse cenário, tem, mas esses fatores ainda contribuem, infelizmente.

Então, enquanto a gente disputar somente no lar, somente no ambiente familiar, essa divisão do trabalho, esses papéis que são criados, esse trabalho que chega não remunerado, a gente não vai ter muito avanço. Por exemplo, a ausência de políticas públicas (…) para a inclusão das mulheres no mercado de trabalho voltadas para criação de creches para que as mulheres possam trabalhar e deixar seus filhos com segurança. Enfim, se fosse o homem que precisasse de um local de cuidados de idosos, se fosse um homem que precisasse disso para poder trabalhar e ter sua renda, políticas públicas já seriam estabelecidas, mas como são as mulheres, infelizmente, o avanço ainda é mínimo.

 

 

Irpaa: No ambiente de trabalho também percebemos a desigualdade de gênero nas funções/ cargos e na remuneração. Qual o papel as instituições, das empresas, associações para diminuir essa desigualdade?

Karine: É um desafio, muitas organizações estão tentando mudar isso, mas eu acho que o primeiro passo para se compreender é a instituição entender que ela também contribui para a reprodução de desigualdades. E a partir do momento que compreende isso, é olhar para dentro da instituição e identificar, fazer um diagnóstico mesmo das ações que reproduzem essas desigualdades, que fazem parte das decisões, fazem parte da rotina, das ações dentro da instituição, e cada local tem um contexto diferente. Mas é base para todas as instituições, a compreensão do que é gênero e a compreensão que existem desigualdades, porque tem gente que nem reconhece que é desigualdade, acha que é “mimimi” das mulheres e também, a partir desse momento conhecer o processo que forma isso, a estrutura, o machismo que nasce do patriarcado, o capitalismo.

Muitas vezes, as mães assumem sozinhas os cuidados da casa, tem mais de três turnos. Quando chega no trabalho estão exaustas e tem que provar ainda que dão conta muito mais do que se espera, isso é muito injusto, identificando isso já é um primeiro passo, aí é trabalhar no processo de formação do ser humano. O que os homens e as mulheres andam fazendo para contribuir para reprodução dessa desigualdade e institucionalmente também tem que contribuir para isso. É olhar, analisar, identificar, reconhecer e a partir disso, agir, porque é a base para todos a formação humana sobre que existe desigualdade, sobre o que são desigualdades de gênero, o que é gênero, o que é patriarcado, como isso impacta na vida das pessoas, como oprime as mulheres.

 

 

Irpaa: O silêncio das mulheres sempre foi facilmente percebido em todas as esferas sociais, mas hoje percebemos que as mulheres estão conquistando mais voz e mais espaço na luta por seus direitos. O que está levando a essa mudança de atitude?

Karine: Hoje, nós conquistamos muitos espaços, mas é recente que a gente, por exemplo, conquistou direito ao voto, é recente que a gente conquistou direito de estudar, de entrar na universidade, é recente que a gente tem o CPF no nosso nome que não é atrelado ao do marido ou ao do pai, é recente que a gente pode fazer nossas próprias escolhas, e é recente que a gente pode fazer laqueadura de trompas sem precisar da permissão do marido para isso, e sem ter filhos. Mas, a nossa luta é histórica, então a partir do momento que a gente tem a compreensão social do nosso papel e que a gente tem direitos, que nós somos seres humanos, nós falamos, estudamos, somos inteligentes (...) para brigar por aquilo que é nosso direito.

Então, é uma consequência do empoderamento ocupar esses lugares, isso se deve ao engajamento social de outras mulheres e a formação de consciência, sem a compreensão de que se têm direitos, a gente continuaria sem voz, sem vez, sem nada, continuaria sendo não considerada como humano, porque não têm direitos.

É fruto de muito trabalho, de muita luta, de muitas mulheres que vieram antes de nós e é muito importante a gente evidenciar isso. Aquela reunião comunitária que a gente participa, que a gente organiza, uma associação que a gente coordena, tudo isso faz diferença na vida da sociedade, da comunidade, e na nossa também, porque caminha cada vez mais para trazer a nossa liberdade, sem medo de ser morta por ser mulher. A liberdade de trabalhar sem ser julgada, sem ser culpada. Isso se faz fruto de muita informação, de muita consciência política, social e de participação, é preciso ter consciência de que você tem direitos. 


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