IRPAA - Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada

Viver no sertão é conviver com o Clima

Formulário de Busca


Notícias

Em sua 37ª edição, Romaria de Canudos celebra fé, partilhas e saberes ancestrais

Em sua 37ª edição, Romaria de Canudos celebra fé, partilhas e saberes ancestrais

Marcado por um dos mais importantes capítulos da história das lutas populares brasileiras, Canudos-BA mais uma vez se tornou palco de fé e resistência durante a 37ª edição da Romaria de Canudos, realizada no município entre os dias 18 e 20 de outubro. O evento reuniu centenas de pessoas em um encontro que celebrou a diversidade cultural e incentivou a busca pela justiça social, por meio de reflexões e aprendizados inspirados pela mensagem de Antônio Conselheiro sobre temas como resistência, esperança e cuidado com o meio ambiente.

Com o tema “Belo Monte: Inspiração de Fé, Partilha e Saberes Ancestrais”, a Romaria teve início com um tríduo de atividades, entre os dias 15 e 17 de outubro, incluindo momentos de exibição e debate de produções audiovisuais relacionadas à Romaria, a Belo Monte e Antônio Conselheiro.

Mais do que uma peregrinação religiosa, a Romaria de Canudos é um espaço para reflexão sobre questões sociais centrais do presente e do futuro. Prova disso foi o ato inter-religioso realizado na sexta-feira (18), à noite, em frente à sede do Instituto Popular Memorial de Canudos. A mesa contou com a participação de representantes da Igreja Católica, da Articulação da Economia de Francisco e Clara, da Igreja Batista Nazareth, da Aliança Batista do Brasil, da Comunidade Espírita de Monte Santo, de povos indígenas da etnia Kaimbé, e do Terreiro Ilê Axé Omim Ôdô, representando as religiões de matriz africana. O ato foi um importante momento de reflexão sobre a diversidade de crenças e a importância da fé como elemento de resistência popular, além de enfatizar a importância do meio ambiente para a espiritualidade, reforçando a conexão entre o sagrado e a natureza.

“Não adianta ter mata e rios preservados enquanto existir uma desigualdade extrema no mundo. Já estabelecemos, em nossos territórios, diversos trabalhos na defesa da casa comum, a exemplo de Antônio Conselheiro, Margarida Alves e Padre Cícero, que acreditaram na ecologia integral, no desenvolvimento integral, em alternativas anticapitalistas e bens comuns; tudo está interligado na potência das periferias vivas, na economia a serviço da Vida nas comunidades, na educação integral, na solidariedade e no clamor do povo”, destacou o padre João Batista, um dos integrantes da mesa.

Na mística de abertura, foi realizada uma homenagem aos ancestrais e lutadores do povo. A cerimônia destacou as contribuições de figuras como Haroldo Schistek, Pastor Djalma Torres, Padre Alberto, Joselina, Irmã Marta, Dom Mário, Mãe Bernardete, Dona Zefinha, Dom Pedro Casaldáliga e Padre Antônio, que inspiraram a luta e contribuíram direta ou indiretamente para a existência e permanência do Instituto Popular Memorial de Canudos (IPMC), idealizador e organizador do evento.

Outra participação marcante foi a de Mãe Antonieta de Oxum, do Terreiro Ilê Axé Omim Ôdô. Em sua fala, a ialorixá destacou a importância de conhecer as religiões de matriz africana como forma de combater o racismo religioso. Mãe Antonieta frisou que os orixás e os santos católicos são entidades distintas, explicando que, durante o período colonial, pessoas escravizadas que cultuavam o candomblé foram obrigadas a praticar o catolicismo. No entanto, como forma de resistência e proteção, elas relacionavam os orixás aos santos europeus, criando assim um sincretismo religioso.

“Os orixás são espíritos que Olodumarê – Deus no candomblé – colocou na terra para tomar conta de cada coisa que existe na natureza. Então, orixá é tudo aquilo que está vivo: a árvore que balança, a água que corre, o animalzinho que passa, o pássaro que voa, o bater das asas de uma borboleta. Tudo isso é orixá”, afirmou Antonieta. Ao relacionar essa visão com a mensagem deixada pelo Beato de Belo Monte, ela reforçou a importância da conexão com a natureza e com o próximo. “Essa coisa linda que acontece aqui que Antônio Conselheiro deixou, de fazer um mundo melhor, nós precisamos fazer, nós precisamos dar continuidade, estarmos um perto do outro e sentir a dor do outro de compartilhar o nosso pão de cada dia com quem não tem. Eu preciso amar o próximo, eu preciso respeitar o próximo e abraçar meu irmão” concluiu. A ialorixá encerrou sua participação com uma bênção cantada, entoando um ponto de Oxalá, um canto sagrado em iorubá – língua ancestral das religiões de matriz africana

Vitória Pimentel de Andrade, jovem multiplicadora da Escola Família Agrícola do Sertão (EFASE), que acompanhou o ato do início ao fim sintetiza o espírito do encontro: “Participar desse momento é muito gratificante porque é possível ver diversas lideranças, diversas pessoas que possuem suas singularidades, suas pluralidades em suas religiões. Então é possível vivenciar essa diversidade e perceber que ela pode ser trabalhada de forma conjunta”.

Natural da Comunidade Tradicional de Fundo de Pasto Lagoa do Mandacaru, em Monte Santo-BA, a estudante da EFASE ressalta que a experiência de alternância e a educação contextualizada, que valorizam a realidade do campo e a transformação social, foram fundamentais para aprofundar sua compreensão sobre a inter-religiosidade. Ela afirma que, “durante as vivências na alternância da escola, a inter-religiosidade se faz muito presente porque lá a gente acolhe, trabalha e celebra as diferentes religiões que os estudantes possuem. Então, além de trazer a memória de Canudos nas suas lutas e das comunidades que integram e fazem parte da construção dessa educação, a religiosidade também é muito presente dentro da escola, com as diferentes religiões de diferentes matrizes e culturas”.

No sábado, a programação combinou momentos de espiritualidade, aprendizado e cultura, recebendo um público diversificado. Estudantes, romeiros e pesquisadores de outras regiões da Bahia, do Nordeste e de diferentes lugares do país visitaram, pela manhã, espaços de memória e históricos, como o Parque Estadual de Canudos, a sede do IPMC, o Memorial Antônio Conselheiro e o Museu Casa Vó Isabel, para vivenciar e conhecer de perto a história de Antônio Conselheiro e de seus seguidores. Com a orientação de guias e professores, os visitantes percorreram os locais que, até hoje, guardam vestígios da Guerra de Canudos, ocorrida há mais de 120 anos.

À tarde, o foco foram as oficinas temáticas. “A fé e a vida comunitária de Belo Monte de Antônio Conselheiro”, facilitadas pelo professor João Ferreira e Josefa Régis (descendente conselheirista); “A ancestralidade conselheirista”, facilitada por José Moacir, presidente do Irpaa; “A economia de Francisco e Clara e a espiritualidade conselheirista na construção de um mundo mais justo”, facilitada por Edson Oliveira (articulação brasileira pela economia de Clara e Francisco - Salvador-BA); “A construção de sinais (Libras) dos espaços públicos e de memória material de Canudos”, facilitada pelo professor Alex Sandrelanio Pereira, Bruno Silva Pedra da Rocha (Campus UNEB Alagoinhas/Associação Educacional Sons do Silêncio - AESOS) e João Batista (IPMC).

No mesmo período, foi realizada no Colégio Modelo Maria José de Souza Alves a plenária da Juventude, com o tema 'Identidade da juventude camponesa'. A atividade, que contou com a participação de mais de 100 jovens, entre estudantes das Escolas Famílias Agrícolas de Sobradinho, Monte Santo e Itiúba, além de integrantes de coletivos e organizações sociais, foi facilitada por uma equipe composta pela Cáritas Nordeste 3, pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), pelo Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) e pelo Coletivo de Jovens de Canudos, Uauá e Curaçá (Coletivo CUC).

Gabriela Ferreira de Brito, integrante do Coletivo de Jovens CUC, destacou que o momento, além de divertido, foi fundamental para compreender mais sobre o protagonismo da juventude. “Foi um espaço interessante, com várias ideias e conceitos de juventude. Discutimos sobre a falta de espaços, que a juventude ainda tem essa dificuldade, e o que podemos fazer para começar a ocupar esses espaços, além de incentivar mais jovens a ter essa percepção, para nos organizarmos mais e conquistar nossos direitos”. A jovem, que é natural de São Paulo-SP, e atualmente reside na Comunidade Tradicional de Fundo de Pasto Ouricuri, em Uauá-BA, falou ainda sobre a diversidade de perspectivas entre os jovens: “Ver pontos de vista diferentes também me fez questionar mais um pouco sobre certas questões da minha vida hoje ainda como jovem”.

As partilhas e os debates, tanto das oficinas quanto da plenária, foram apresentados na noite do dia 19. A estrutura montada em frente à capela do IPMC também foi o palco para o lançamento de livros e homenagens, como a feita à romeira Joselina Rabelo (in memoriam), que contribuiu com a organização da romaria por mais de três décadas. Além disso, um desfile cívico em alusão à história do município também ocorreu. O público teve acesso a uma exposição de produtos da agricultura familiar e de obras literárias com o tema de Canudos, Belo Monte, Caatinga, Semiárido, entre outros.

A programação do dia foi encerrada com apresentações culturais, incluindo shows de artistas da região, como Bião de Canudos, o Coletivo Semi-Áridas (formado por mulheres sertanejas multi-instrumentistas), Catarino Forrozeiro e Paulinho de Jequié.

Clérisson Belém, Coordenador Institucional do Irpaa, ressaltou a importância da parceria de longa data entre a instituição e o IPMC, que tem como objetivo comum a valorização da história de Canudos e a construção de um futuro mais justo para as comunidades do Semiárido. “O Irpaa é uma instituição fundadora do IPMC e está há mais de 30 anos construindo e resgatando essa história”. Segundo ele, a instituição “também se inspira muito na história de Canudos para construir a proposta de Convivência com o Semiárido, que vem sendo construída e trabalhada nas comunidades junto com as famílias agricultoras”.

Nessa mesma linha, de acordo com o Presidente do Irpaa, José Moacir Santos, essa parceria é fundamental, pois o Irpaa “tem colhido informações de Canudos: como eles cuidavam da Caatinga, como eles cuidavam da terra e dos animais, e como eles se organizaram para discutir a vida da comunidade. E a ideia é que o Irpaa passe para as pessoas essas informações e multiplique junto com os grupos com quem o Irpaa trabalha. Então, é comunicar e anunciar a experiência que foi aqui”.

No domingo (20), terceiro e último dia do evento, ao amanhecer, às 6h, um público de aproximadamente 300 pessoas lotou as ruas para participar da tradicional celebração eucarística. Em seguida, em carreata, romeiros e romeiros se deslocaram até o Parque Estadual, de onde, em uma caminhada com bênçãos, orações, cantos populares e intervenções culturais, seguiram em direção ao alto da Favela, um dos pontos mais visitados do local histórico. Romeiros e romeiras, unidos/as por um ideal comum, entoaram cânticos em prol da justiça, da igualdade e do Bem-Viver.

Ao longo dos três dias de programação, caravanas, grupos e pessoas de outras regiões do país se juntaram à tradicional celebração, a exemplo de Edir Pedrosa, radialista e profissional de cozinha, natural de Solonópole-CE mas que atualmente reside em Aripuanã-MT. Participando da romaria pela segunda vez, ele afirma que conhecia a história sobre Canudos apenas por meio de livros de história, mas que estar em Canudos desperta um “sentimento de imensa gratidão, de reviver a luta de Conselheiro, daquelas pessoas que sofreram genocídio por parte do Estado genocida e criminoso que, infelizmente, até hoje está impune”.

O comunicador enfatizou ainda a importância da memória de Antônio Conselheiro, afirmando que “a luta e a memória mostram como, nos dias atuais, é necessário ter pessoas com a coragem de Conselheiro para encarar um sistema tão opressor e tão perseguidor de pessoas pobres e carentes”. Para ele, a resistência de Canudos é um lembrete constante da necessidade de continuar a luta por justiça e igualdade.

Um dos organizadores do evento e integrante do IPMC, João Batista Lima, Guia de Turismo, Historiador e descendente de Conselheirista, reforça que “a Romaria reúne uma série de tradições assim como na formação do Belo Monte de Antônio Conselheiro que reunia indígenas, roceiros, povos da diáspora africana”. Segundo ele, “as culturas se fundem, as tradições estão presentes e ela se concretiza na realização e na composição da romaria nessa grande caminhada onde a fé e a resistência à luta do povo sertanejo estão presentes”. Ele finaliza destacando que mais uma vez as pessoas foram a Canudos para “Celebrar essa resistência, essa luta, essa fé nesse povo sertanejo, esse povo que luta e resiste”.

E quem desde criança aprendeu com a sua avó a ser romeira reforça estas palavras. A jovem canudense Elane Santos, da Comunidade Tradicional de Fundo de Pasto Angico e Barriguda, afirma que pôde “acompanhar o crescimento e avanço dessa semente que foi lançada lá atrás há 37 anos por um grupo ecumênico, por um grupo inter-religioso”. Ela se considera um fruto desse processo e celebra: “poder perceber que a semente semeada lá atrás tem dado fruto e muitos frutos e eu me considero um fruto desse processo. Eu fico maravilhada porque esse momento, para além de ser momento de muito aprendizado, é um momento de resgate da nossa história e da nossa memória”.

A 37ª Romaria de Canudos foi organizada pelo Instituto Popular Memorial de Canudos (IPMC), com o apoio da Paróquia de Santo Antônio de Canudos, da Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá (COOPERCUC), da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), do Coletivo de Jovens de Curaçá, Uauá e Canudos, da Comissão Pastoral da Terra, do Programa Bahia Sem Fome do Governo do Estado da Bahia, da Articulação Estadual de Fundo e Fecho de Pasto, da Associação Regional de Convivência Apropriada ao Semiárido - ARCAS, da TV Canudos, da Cáritas Brasileira, além de uma série de movimentos populares, pastorais, do poder público municipal, de romeiros e romeiras, e de organizações sociais, entre elas o Irpaa.

Texto e fotos: Danilo Souza | Edição: Thaynara Oliveira

Eixo Educação e Comunicação do Irpaa


Veja também

< voltar    < principal    < outras notícias

Página:

Em sua 37ª edição, Romaria de Canudos celebra fé, partilhas e saberes ancestrais

Para:


Suas informações:



(500 caracteres no máximo) * Preenchimento obrigatório




Campanhas

Newsletters

Cadastre seu e-mail para receber notícias.

Formulário de Contato





Faça sua doação


Copyright © 2005 - 2009 IRPAA.ORG Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada - IRPAA
Avenida das Nações nº 04 - 48905-531 Juazeiro - Bahia, Brasil
Tel.: 0055-74-3611-6481 - Fax.: 0055-74-3611-5385 - E-mail: irpaa@irpaa.org - CNPJ 63.094.346/0001-16
Utilidade Pública Federal, Portaria 1531/06 - DOU 15/09/2006 Utilidade Pública Estadual, Lei nº7429/99
Utilidade Pública Municipal, Lei nº 1,383/94 Registro no CNAS nº R040/2005 - DOU 22/03/2005