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Intercâmbio da Rede Mulher no Piauí evidencia contradições em torno da implantação de Unidades de Conservação no Semiárido

Intercâmbio da Rede Mulher no Piauí evidencia contradições em torno da implantação de Unidades de Conservação no Semiárido

Conhecer realidades distintas provocadas a partir da implantação do Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, foi o que chamou atenção de cerca de 40 mulheres do Sertão do São Francisco que participaram de um Intercâmbio no município piauiense de São Raimundo Nonato, nos dias 16 e 17 de março. O grupo integra a Rede Mulher existente no Território Sertão do São Francisco, na Bahia, e a atividade faz parte da proposta de fortalecimento da organização.

O primeiro dia foi reservado para conhecer a experiência do Assentamento Novo Zabelê, a 10 km da cidade, que hoje se destaca na região devido a produção e comercialização de produtos orgânicos nas roças e quintais produtivos, incluindo o cultivo de algodão orgânico para exportação. As famílias, assentadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, são remanescentes da área onde foi implantado o Parque Nacional Serra da Capivara, as quais foram retiradas da comunidade Zabelê na década de 1980.

De acordo com uma das lideranças do Assentamento, Ana Claudia Alves, o Assentamento só foi criado dez anos após a desapropriação. “Foram as famílias mais antigas do Zabelê que vieram pra cá (…). Eles nunca se acostumaram com essa história de sair do Parque e vir pra cá”, conta. Já as gerações mais novas, segundo Claudia, se adequaram com maior facilidade, até mesmo por ser mais próximo da cidade e usufruir de algumas facilidades como transporte, energia, etc.

É essa geração atual que vem investindo em algumas atividades produtivas, a exemplo do beneficiamento de umbu e caju, que durante alguns anos movimentou a economia do Assentamento e agora a comercialização de produtos orgânicos nos mercados institucionais como o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA e Programa Nacional de Alimentação Escolar – Pnae. Uma variedade de 31 produtos entre frutas, verduras, hortaliças, grãos, raízes, é vendida, através de pregão eletrônico, para o Instituto Federal de Educação. Atualmente 20 famílias do Novo Zabelê e cinco de um território quilombola da região entregam a produção para a instituição de ensino, recebendo 30% acima do valor do mercado convencional por possuir a certificação orgânica.

A gestão dessa iniciativa é de responsabilidade da Associação dos Produtores e Produtoras Agroecológicos do Semiárido Piauiense – Apaspi, que atualmente também mantém contrato com uma empresa espanhola para fornecer algodão orgânico cultivado pelas famílias. O agricultor Vilmar de Jesus Macedo, conta que deixou de trabalhar como moto táxi para investir na produção agrícola e agora se diz animado com as vantagens de plantar algodão, de onde se aproveita a lã para o comércio exterior e o caroço para produzir a torta para os animais criados na região. Além da venda para esses mercados, Vilmar diz também que tem obtido êxito nas feiras locais.

A jovem agricultora Sílvia Souza considera que os sistemas produtivos hoje existentes no Assentamento, associados à educação contextualizada que vem sendo trabalhada, permite uma boa qualidade de vida para as famílias. Ela destaca ainda a necessidade de apostar no replantio de algumas espécies que hoje vem desaparecendo devido as mudanças climáticas.

Geração de renda através do turismo


Diferentemente das famílias da comunidade Zabelê, que residiam em um trecho da área que foi transformada no Parque Serra da Capivara, as famílias do Sítio do Mocó apenas possuíam roças dentro da área. Assim, não precisaram ser realocadas, ao contrário, foram envolvidas nas atividades laborais durante a implementação do Parque e de manutenção. Empregos diretos como de guias turísticos, guardas, técnicos/as em arqueologia, funções administrativas e de manutenção da infra-estrutura, beneficiaram jovens da comunidade, que enxergam de forma positiva a criação do Parque Nacional, o que ocorreu através do Decreto 83.548 de 5 de junho de 1979.

O guia turístico Mário Afonso Paes Landim, há 24 anos trabalha como condutor de visitantes e guarda-parque. Para ele, que começou a atividade de guia aos 15 anos, a qualidade de vida que sua família hoje possui deve-se ao Parque e é fruto da formação que muitos/as moradores/as do Sítio do Mocó receberam a partir de escolas especializadas e do empenho da arqueóloga Niède Guidon, que encapou a luta pela criação do Parque. “Foi feito um trabalho social na comunidade (...), teve toda uma preparação com o pessoal daquela geração”, lembra Mário.

O funcionário do Parque, apesar de satisfeito com os aspectos positivos, reconhece que a situação das famílias do Zabelê foi bem diferente, uma vez que foram retiradas das terras, muitas sem indenização ou recebendo valores irrisórios. Isso faz com que na região haja divisão de opiniões, principalmente com relação ao trabalho da pesquisadora Niède Guidon, avalia Mário Afonso.

Contudo, para Marinho, como é conhecido, a comunidade local entendeu que a preservação do Parque era o que garantiria a renda das famílias do entorno, principalmente a partir do turismo. Ele menciona também que não havia muito interesse da população local em visitar o Parque mas de alguns anos pra cá essa realidade tem mudado, principalmente devido ao turismo pedagógico praticado por escolas e centros de estudos do Piauí e estados vizinhos. O guia cita que muitas pessoas são levadas também pela curiosidade de conhecer o Museu da Natureza, que fica próximo à Serra. O número de visitas ao Parque se aproxima de 20 mil por ano desde 1992, quando foi aberto a visitação, após ter sido tombado pela Unesco como patrimônio cultural da humanidade.


Relação com o Boqueirão da Onça

Boa parte das mulheres que participou do Intercâmbio vive em comunidades rurais que serão afetadas com a criação do Parque Nacional Boqueirão da Onça, que envolve os municípios baianos de Sento Sé, Sobradinho, Juazeiro, Campo Formoso, Umburanas e Morro do Chapéu e possui diploma de criação através do Decreto nº 9.336, de 5 de abril de 2018.

A visita ao Assentamento Novo Zabelê e ao Parque Nacional Serra da Capivara foi uma oportunidade de perceber os prós e contras que também estão sendo postos em discussão pelas comunidades com a criação do Boqueirão da Onça. Nos dois casos em questão, porém, há muitas diferenças. A primeira delas diz respeito ao tamanho da área. De acordo com informações disponibilizadas pelo Instituto Chico Mendes/Ministério do Meio Ambiente, o Serra da Capivara possui 100 mil hectares, enquanto a área do Boqueirão da Onça é de 346.908,10 hectares. Ou seja, está em evidência o modo de vida da população que reside em uma área quase quatro vezes maior do que a realidade registrada no Piauí. Além disso, na Bahia, as famílias vivem da criação de animais de médio e pequeno porte, tendo a Caatinga como principal local para isso, mantendo um modo de vida tradicional secular conhecido como Fundo de Pasto.

A integrante da Rede Mulher, Margarida Ladislau, chamou atenção para outro elemento que ela percebeu e que diferencia os dois casos: “lá [Serra da Capivara] eu não vi parque eólico, eu não vi mineração”, observa Margarida, destacando que na área do Boqueirão da Onça existe esses tipos de empreendimentos mantidos pelo governo e/ou empresas privadas. “A gente se pergunta: como é que vai acontecer isso de preservação, se tem mineração? Será que vai aproveitar o povo pra fazer alguma coisa nas atividades do Parque?”, essas são algumas das inquietações que a trabalhadora rural diz ter trazido da experiência e que devem ser levadas para as comunidades baianas. Para ela, foi importante conhecer as distintas realidades das duas comunidades afetadas pelo Parque em São Raimundo Nonato, o que ajudou ainda mais a enxergar uma série de contradições na implantação do Parque Nacional no Sertão Baiano.

Conforme avalia Maria do Socorro dos Santos, membro da Rede Mulher e uma das organizadoras do Intercâmbio, conhecer o trabalho com a produção orgânica, bem como a Serra da Capivara e todas as experiências de organização e geração de renda em torno disso foi importante para as mulheres fortalecerem o trabalho de base em suas comunidades.

O Intercâmbio contou com apoio do Projeto Pró-Semiárido, executado pela Secretaria de Desenvolvimento Rural da Bahia, além do Irpaa e Sasop, entidades parceiras da Rede Mulher Sertão do São Francisco.

 

Texto: Comunicação Irpaa

Fotos: Comunicação Irpaa/ Mário Afonso

 


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