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[Entrevista] O desconhecimento da Caatinga e o mito da seca

[Entrevista] O desconhecimento da Caatinga e o mito da seca

Para Haroldo Schistek, é preciso conhecer o ambiente e adaptar suas necessidades de produção a ele. Do contrário, o resultado é pouca comida e muitas áreas degradadas

“Precisamos concordar que não existe seca no Semiárido. Existe, sim, falta de conhecimento sobre a realidade climática e, em consequência, o que pode plantar ou criar. A seca na cabeça das pessoas é a pior das secas”. A fala contundente é de Haroldo Schistek, militante do Semiárido brasileiro, que desde o fim dos anos 80 vem lutando para que se conheça mais essa região do país e, assim, se consiga conciliar a necessidade de produção de alimentos com a preservação do bioma. Segundo ele, esse desconhecimento vem desde os portugueses. “O interesse estava concentrado na faixa litorânea, procurando pau-brasil ou plantando cana-de-açúcar”, recorda. Mas a necessidade de criar gado empurrou os vaqueiros para o centro do país. A partir daí, encrusta-se a cultura de impor forma de produção a uma região tão peculiar.

Schistek é o idealizador da perspectiva da Convivência com o Semiárido – CSA. “Em outras regiões áridas ou semiáridas, as populações nativas selecionaram ao longo de milhares de anos plantas para cultivar, domesticaram animais silvestres resistentes ao clima, tudo que não tem acontecido aqui”, destaca em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. É por isso que aposta nessa relação de associação com o clima. “A roça de milho morreu por causa da seca? Foi não! Pois, se tivesse plantado sorgo, em vez de milho, teria uma roça abundante apesar da pouca chuva. Foi a seca que matou tua vaca e os bezerros? Foi não, mude para a criação de caprinos e ovinos e terá sucesso”, exemplifica.

Haroldo Schistek é teólogo pela Universidade de Salzburgo, Áustria, agrônomo pela Universidade de Agricultura em Viena. Foi ele quem idealizou o Instituto Regional da Pequena Agropecuária, com sede em Juazeiro, na Bahia. O Instituto atua desde fins da década de 1980 no Semiárido, propõe um desenvolvimento dentro do seu contexto edafoclimático (relação planta-solo-clima, visando plantio), levando a população e os tomadores de decisão à compreensão da especificidade do Semiárido Brasileiro em conjunto com a preservação do ecossistema.

No dia 31 de maio, das 19h30min às 22h, ele profere a conferência Bioma Caatinga: políticas de conservação/ preservação e o paradigma da "Convivência com o Semiárido", dentro da programação do evento Os biomas brasileiros e a teia da vida, promovido pelo IHU

Confira a entrevista:

IHU On-Line - Como se caracteriza o semiárido brasileiro, também chamado de Caatinga?
Haroldo Schistek - As superfícies do Semiárido Brasileiro - SAB e a área do domínio da Caatinga não coincidem. Na definição dos critérios do Semiárido Brasileiro foram incluídas áreas limítrofes, não propriamente semiáridas, por questões administrativas. O SAB cobre 982.563 km², enquanto a área da Caatinga abrange 844.453 km².

As principais características do SAB são as chuvas irregulares na sequência temporal, a distribuição geográfica e a alta evaporação potencial e extremamente variável no volume a cada precipitação. Caracterizar o SAB por ser pouco chuvoso passaria no cerne da questão. Em Juazeiro da Bahia registramos uma precipitação média anual de 525 mm, semelhante a cidades como Berlim, na Alemanha, ou Viena, na Áustria. O que nos difere dessas cidades é que lá a evaporação potencial fica em torno de 320 mm, enquanto em Juazeiro pode chegar a 3.000 mm por ano.

A principal característica da Caatinga, considerando aqui a porção vegetal, é que possui uma adaptação perfeita ao clima semiárido com suas chuvas irregulares e grande evaporação potencial. Podemos distinguir três tipos de plantas, pelo uso da água:

- Uso intensivo: gramíneas e plantas anuais. Possuem raízes rasas/profundas, densas, mostram uma rápida recuperação depois de períodos sem chuva, rápida reprodução e vida curta. Aparecem somente em anos de chuva suficiente. Seu tamanho depende da água disponível.

- Uso extensivo: por exemplo, angico, juazeiro, aroeira, caatingueira, pau ferro, jurema preta. Possuem raízes muito profundas, folhas adaptadas aos períodos sem chuva, vida longa. Buscam água em fendas muito profundas.

- Uso acumulador: por exemplo, cactáceas, faveleiro, umbuzeiro, bromeliáceas, umburuçu. Possuem raízes muito rasas, órgãos de armazenamento de água, em parte troncos fotossintéticos, vida mediana a longa. Estas plantas se beneficiam especialmente pelas chuvas muitas vezes curtas, intensas, molhando somente os primeiros centímetros do solo, características do SAB.

IHU On-Line - De que forma a seca é constitutiva do bioma Caatinga?
Haroldo Schistek - Em primeiro lugar, devemo-nos perguntar qual o nosso imaginário quando falamos de “seca”. No SAB existe seca? A meu ver, não existe. No deserto do Saara existe seca? Também não, e ninguém ousaria chamar de “seca” quando a chuva cai só a cada poucos anos. O clima do Saara é assim mesmo. Como seca, podemos chamar um evento quando, numa região de precipitações normalmente regulares, de repente cessa a chuva ou cai em quantidade inferior e as culturas agrícolas não conseguem completar seu ciclo.

Falando de “seca” em relação ao SAB, revela como é pobre o conhecimento sobre a realidade climática da região. Revela que o consideramos uma região “normal”, quer dizer de chuva pouca, mas regular. Consideramos que a precipitação “média” é algo que teria que ocorrer a cada ano. Falamos de “ano normal”, quer dizer um ano de chuva o suficiente regular, para uma safra agrícola satisfatória. Enquanto o “normal” no SAB é a chuva irregular no espaço geográfico e na sequência temporal.

À pergunta modificada: De que forma a chuva irregular é constitutiva do bioma caatinga? Há 10 a 8 mil anos, houve uma mudança climática bastante abrupta que deu início à formação do que chamamos hoje de Caatinga. Antes a área era coberta por um tipo de mata atlântica, intercalado por manchas semelhantes ao cerrado. Evidentemente o clima é o fator predominante na formação da cobertura vegetal em qualquer parte do mundo. O que destaca o clima da região não é de ser somente semiárida, mas também de chuvas irregulares.

Quando desenrolamos a sequência mensal, ano por ano, tomando o caso da depressão sertaneja do médio São Francisco, podemos observar um padrão geral no período chuvoso: as chuvas se concentram em quatro meses, dezembro, janeiro, fevereiro e março. Os oito meses do ano podem ser considerados secos, com talvez alguns milímetros no período de São João. Mas no outro lado, não observamos nenhum padrão na incidência de chuvas mensais. Podemos afirmar: cada ano possui um padrão de chuva diferente. Em um ano chove bastante em dezembro, em outro ano somente em fevereiro. Seria difícil encontrar um ano no qual a chuva seja distribuída uniformemente pelos quatro meses do período chuvoso.

A dinâmica semiárida pela dinâmica da planta

Se já representa um grande desafio para uma planta se adaptar a um regime de chuvas tão escassas, ter água para brotar, crescer, florar e frutificar somente em quatro meses e depois esperar mais oito meses para um novo período chuvoso, maior ainda é o desafio se as chuvas caem de maneira irregular. A planta precisa ter um mecanismo de extrema maleabilidade para adaptar seu crescimento e seu ciclo reprodutivo às grandes lacunas entre as precipitações, vamos dizer um intervalo de 40-60 dias entre uma primeira e a próxima chuva.

Ou se tratando de plantas anuais ou de sementes de árvores e de arbustos, elas mostram uma resistência impressionante contra água: se a chuva for pouca, as sementes não nascem. Somente depois de dias seguidos de chuva, umedecendo também camadas mais profundadas do solo, a semente brota. Assim terá a garantia de poder firmar raízes em profundidades, onde a água fica armazenada. (Diferente de milho ou feijão que nasce muito rápido e morre logo, se as chuvas descontinuarem.) Mas o desenvolvimento de plantas não depende unicamente da precipitação, depende também do tipo de solo, do subsolo e do relevo.

No SAB podemos observar diferenças impressionantes na densidade da cobertura vegetal e na ocorrência de espécies, conforme o subsolo. Entre 70 e 80% do SAB possui um embasamento cristalino (granito, gnaisse…), com solos muito rasos – 60 cm de profundidade – e a inexistência de um lençol freático. A outra parte são solos sedimentares (calcários, arenitos) que possuem solos profundos a muito profundos e lençol freático abundante, especialmente no caso dos arenitos. Na parte do embasamento cristalino a vegetação é mais rala e de menor porte. Impressiona viajar pelo interior e observar o porte das plantas e a densidade muito maior quando o subsolo muda de cristalina para calcário – embora a quantidade de chuva seja exatamente a mesma.

IHU On-Line - Apesar das características do semiárido de baixa umidade, de que forma as mudanças climáticas têm impactado na região de Caatinga, intensificando fenômenos como a seca prolongada?
Haroldo Schistek - Antes de procurar a culpa na mudança climática, que ninguém de raciocínio claro pode negar, vamo-nos voltar para eventuais componentes locais que possam ser causadores de chuvas escassas. Mas aí existe muito espaço para discussão, para teorias. A maioria dos cientistas aponta chuvas mais escassas para o Nordeste e o SAB, enquanto alguns veem a perspectiva de maneira positiva: com o aquecimento global deve chover mais no SAB. Quais são os problemas aqui do SAB, quais as soluções?

O Ministério do Meio Ambiente informa que 46% da Caatinga foi desmatada. Existem dados que indicam mais, existem áreas desertificadas, sem retorno, e muito da Caatinga foi raleada. Quer dizer, foram retiradas árvores de maior porte para construção civil, fabricação de móveis, para carvoarias, para lenha doméstica, de padarias, olarias e até reformadoras de pneus. Algo que não é recente. Na construção de casarões de Salvador foi usado madeira de lei da Caatinga, no século XIX. Um grande estrago na vegetação nativa foi causado pelos navios vapores que navegaram no Rio São Francisco, pois usavam a madeira para aquecer suas caldeiras.

Quem anda pelas estradas olhando para dentro da Caatinga, pode pensar que seja uma Caatinga mais rala. Mas se embrenhando na vegetação percebe por toda parte os restos mortais, troncos de então árvores frondosas. Mas também a retirada de plantas para alimentação de animais, em anos mais secos, reduziu também a densidade das plantas. Isto, especialmente, para manter gado bovino que não é adaptado para as condições de semiaridez. Desta forma foram sacrificadas grandes áreas de bromeliáceas, e todo tipo de cactáceas.

Uma porção de terra desnuda ou vegetação rala ou com vegetação predominantemente baixa, fica muito mais exposta à radiação solar, esquentando. Do solo vai subindo um ar quente, que empurra as nuvens para camadas mais altas, impedindo a chuva. Porém, quanto mais alto as nuvens são elevadas, chegam em camadas frias e deságuam em chuvas torrenciais. Porém, não consegue penetrar no solo, criar uma camada impermeável e arrasta a camada fértil da superfície do solo. Resumindo: chuvas escassas, mais irregulares ainda no tempo e no espaço e o solo degradado não permitem à planta cultivada sobreviver os veranicos.

Fracasso do eldorado

Um exemplo contundente encontramos na região de Irecê, na Bahia. Situada em cima de um dos melhores solos do Brasil (calcário), era o grande e seguro fornecedor de feijão para Salvador. E registra também chuvas um pouco mais abundantes. Eram pequenas roças cortadas na vegetação densa da Caatinga. Estas clareiras não chegaram a influenciar o clima geral da região. Era o eldorado do feijão. Delfim Neto , ministro do Planejamento, ordenou transformar a região num novo polo agrícola, o do feijão. Tratores com correntes derrubaram tudo, inclusive a árvore sagrada do sertanejo, o umbuzeiro. Muita terra foi grilada, muito dinheiro foi investido, máquinas compradas. Mas o eldorado durou pouco: a chuva começou a falhar, as máquinas foram devolvidas para os pátios dos bancos, pois em Brasília não se tinha conhecimento do clima peculiar do SAB, nem da importância decisiva da Caatinga em pé.

Depois, os agricultores começaram a investir em perfuração de poços, aspersão etc. A região virou o polo da cenoura, mas não se estabilizou mais. Pois a quantidade de água em subsolo de calcário é limitada e não deu, e nem dá para todo o mundo que quer irrigar.

Para brecar o aquecimento e chuva escassa no SAB: desmatamento zero e recaatingamento em grande escala. O Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada - Irpaa tem mostrado que recaatingamento é possível e facilmente alcançável, porém a longo prazo.

IHU On-Line - Faz sentido combater a seca ou seria mais adequado construir políticas públicas voltadas às populações que vivem nestas regiões?
Haroldo Schistek - Uns dizem “combater a seca”, outros, “combater os efeitos da seca”. Que ideia mais abstrusa. Combater incêndio, sim, mas a seca? Como seria? Pode-se combater algo que existe: o inimigo, doenças, incêndio. Mas a seca? A seca é caracterizada por algo que não existe, por algo que não ocorreu, quer dizer a chuva. Como combater o nada, o inexistente? Só pode ter saído do jargão militar.

“Combater os efeitos da seca” faz um pouco mais de sentido. Mas vai na mesma direção, pois o efeito da seca é falta de comida, falta de água, falta de plantas nas roças, animais mortos… De novo, combater o nada. Entretanto, transformando a perspectiva em “amenizar ou anular os efeitos da seca”, faria mais sentido.

Perspectivas de futuro

Mas só estou falando de coisas passadas, que já ocorreram e não têm mais jeito. O leite foi derramado e não adianta combater leite derramado. Primeiro, precisamos concordar que não existe seca no SAB. Existe, sim, falta de conhecimento sobre a realidade climática e, em consequência, o que pode plantar ou criar. A seca na cabeça das pessoas é a pior das secas.

A roça de milho morreu por causa da seca? Foi não! Pois, se tivesse plantado sorgo, em vez de milho, teria uma roça abundante apesar da pouca chuva. Foi a seca que matou tua vaca e os bezerros? Foi não, mude para a criação de caprinos e ovinos e terá sucesso. Morreram por falta de comida nos meses sem chuva? Não foi por causa da seca, foi por falta de estoque de alimento animal, preparado durante os meses de chuva.

A Convivência com o Semiárido - CSA é a saída deste dilema. Em outras regiões áridas ou semiáridas, as populações nativas selecionaram ao longo de milhares de anos plantas para cultivar, domesticaram animais silvestres resistentes ao clima, tudo que não tem acontecido aqui, pois a população nativa vivia em nível de caçador e coletor. Os colonizadores portugueses introduziram plantas, animais e tecnologias em desequilíbrio com a realidade climática. A CSA é nada mais do que observar e escutar o que a natureza nos mostra como viável e depois organizar a vida das pessoas, as tecnologias e a produção agropecuária de maneira apropriada.
A CSA tem que virar política pública, senão o SAB vira um deserto.

IHU On-Line - Historicamente, como se deu a ocupação da Caatinga? Como a presença humana impactou no semiárido?
Haroldo Schistek - Os portugueses, de início, não mostraram nenhum interesse em ocupar o SAB. Algumas expedições chegaram à altura de Jacobina, Juazeiro e Curaçá, procurando metais e pedras preciosas e minérios. O interesse estava concentrado na faixa litorânea, procurando pau-brasil ou plantando cana-de-açúcar. Mas para produzir cana precisa de gado bovino, para transportar a cana para os engenhos, para mover o próprio engenho, para fazer do couro baús para transportar o açúcar e, evidentemente, para ter carne para os senhores e escravos. E o gado necessita de pasto, ficando cada vez mais escasso na medida que as plantações de cana-de-açúcar se expandiram. E, numa época sem arame farpado para cercas, vacas e bois invadiam as plantações.

Assim, por decreto foi estabelecido que o gado precisa ser criado no interior, longe das plantações de cana-de-açúcar. E não demorou muito: em 1640 se instalou o primeiro curral para bovinos nas imediações da hoje cidade de Curaçá, BA. No primeiro século, o gado bovino se deu bem, devido à Caatinga intocada até então. Pode ser também por um intervalo de uma pequena glaciação no hemisfério norte que teria baixado as temperaturas e trazido mais chuva. Mas já depois um século, o gado criado com o pasto natural de Caatinga perdeu a preferência. Os bois do norte de Minas Gerais tinham uns bifes mais macios. Só que o estrago estava feito. Daí, então, o gado bovino está presente no SAB, que come mais do que produz e esfarela com suas pisadas fortes o solo frágil nos longos meses sem chuva.

Política de ocupação da terra

A principal responsabilidade pela degradação da Caatinga ao longo destes 500 anos foi a política de ocupação territorial empenhada pelos portugueses. Ou a falta de uma política em relação à terra. As capitanias hereditárias não deram muito certo. O instituto jurídico das sesmarias, modelo adotado em Portugal já no século XIV, onde funcionou de alguma forma, poderia ter colocado a terra para aqueles que queriam produzir nela. Porém, no Brasil somente ajudou para estabelecer grande propriedades, ao exemplo da Casa da Torre cujo domínio se estendia da metade da Bahia até o Maranhão. Semelhante à Casa da Ponte que acumulou sesmaria por sesmaria na mão de uma única pessoa.

O morgado da Casa da Torre perdurou por quase 300 anos e englobava quase um milhão de quilômetros quadrados. Os donos do morgado, a família dos Garcia D'Ávila, nunca estiveram no interior para conhecer suas posses. Estes latifundiários tinham como única prioridade extrair o máximo das terras, com o mínimo de investimento. Não importa a destruição, pois a área é tão grande que nunca faltara terra nova no espaço de uma vida humana. Bem diferente a um colono que mora com sua família na gleba.

IHU On-Line – Como compreender os problemas das populações que vivem na Caatinga?
Haroldo Schistek - O rei de Portugal percebeu muito cedo que as Sesmarias não cumpriam a sua finalidade. Tantas sesmarias escrituradas, mas o lucro, impostos e produção não se equipararam. Assim, já em 1699, uma ordem régia cancela todas as doações de sesmarias desocupadas, mas a Casa da Torre ignorou. Os Garcia D'Ávila podiam se dar ao luxo de não atender uma ordem régia, pois eram importantes para o rei, mantinham a ordem, faziam coleta de impostos. Os Garcia D'Ávila eram a mão do rei no Brasil.

Mas a corte em Lisboa não aceitava a desobediência. Em 1729, emitiu uma nova ordem, que novamente foi desrespeitada. Porém, os tempos mudaram em 1753, quando outra carta régia reafirma o cancelamento. A Casa da Torre já tinha perdido o interesse pelas terras, assim alguns conseguiram propriedades. Finalmente em 1822, acaba a sesmaria como doação pura e simples e não se colocou nenhum substituto que regulamentasse a questão da terra: começaram as “décadas sem lei”, décadas selvagens na qual os mais ricos e poderosos se aproveitaram da brecha para expandir suas ocupações territoriais. Somente em 1850 surgiu uma nova legislação, a "Lei das Terras”, que permitia o a acesso à propriedade a pessoas ricas.

Não fossem as dificuldades impostas à ocupação livre da terra, possivelmente a estrutura da região, tanto do ponto de vista econômico como social e político, teria sido bem diferente. O vaqueiro teria tido facilidade para transformar-se em proprietário autônomo e os que chegassem à região se tornariam agricultores livres com forte possibilidade de que aqui fosse criada uma sociedade semelhante à do sul do Brasil, que se beneficiou enormemente com a imigração da Europa central no século XIX.

Estatuto da Terra

O “Estatuto da Terra” promulgado em 1964 pelos militares, embora bem elaborado, nunca foi posto em prática. Somente a Constituição Federal de 1988 inova, cria o princípio da "função social da terra". Mas parece que já foi tarde, pois as estruturas fundiárias dominantes se endureceram de uma forma que será difícil de criar justiça na terra.

Relação entre água, terra e suas pessoas

E a relação água–terra? No ambiente semiárido as plantas não dão uma lição: ficam distantes umas das outras, pois precisam de uma área grande em torno de si para captar a umidade da água da chuva. Num evento, em Casa Nova, Bahia, fizemos uma demonstração sobre o barreiro trincheira, também conhecido como caxio. São escavações, atingindo o subsolo de piçarra, pelo menos com quatro metros de profundidade, cinco de largura e comprimento que pode ter 20, 50, 100 metros. Diferente das lagoas que são bacias largas e rasas, no barreiro trincheira a perda por evaporação é muito reduzida.

Veio um agricultor, e disse que queria muito um barreiro trincheira, mas não podia. Dizia que sua propriedade é muito pequena e imaginava que o lugar ideal seria exatamente onde planta todo ano a sua roça. Ele saiu triste, de cabeça baixa. O programa 1 milhão de cisternas se viu muitas vezes confrontado com a seguinte situação: uma senhora na reunião sobre a implantação do programa de cisterna no município, sob lágrimas conta que não vai aceitar a cisterna no pé da casa, pois o patrão proibiu. Evidentemente ele não tem dificuldade de mandar embora a família, quando ele quiser, para ela não criar vínculos físicos com a terra.

Uma terra apropriada ao SAB terá espaço para armazenar água, terá diversas formas de relevo que facilitam a construção de sistemas de captação da água da chuva e terá sempre um lugar propício para perfurar um poço.■

Ricardo Machado | Edição João Vitor Santos

Disponível em: IHU On-line


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