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Entrevista: Agricultura Familiar e relações de gênero

Entrevista: Agricultura Familiar e relações de gênero

As mulheres têm conquistado a cada dia novos espaços na sociedade brasileira, mas a diferença entre os gêneros ainda é sentida de diversas formas. Assim acontece no meio rural, onde muitas vezes o trabalho feminino é tido apenas como ajuda. Sobre este e outros temas a equipe do Irpaa conversou com Simone Santarém, Embaixadora da Campanha Mulheres Rurais, Mulheres com Direitos, da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO.

Irpaa - Qual o papel da mulher quando o assunto é trabalho na agricultura familiar?

Simone Santarém - As mulheres rurais exercem dois trabalhos: o trabalho reprodutivo, que aqui nós vamos incluir o cuidado com a casa, com os filhos com a alimentação, incluindo ainda buscar água, pegar lenha, os tratos com as hortas, com os quintais, toda parte de pequenos animais, seja de galinha, porcos, cabritos, burregos. Então todo esse trabalho é exercido pelas mulheres e com o auxílio normalmente dos filhos, nós chamamos de trabalho reprodutivo. É possível, a partir deste trabalho, reproduzir a família. E onde está o trabalho produtivo? Quando a mulher vai ao roçado, se eu for exemplificar uma plantação de mandioca, normalmente são as mulheres que plantam, a gente tem um sistema onde os homens fazem a limpa do espaço fazem as covas e são as mulheres que passam plantando. Após o plantio são normalmente as mulheres que mantêm essas roças limpas, elas fazem a campina, fazem a manutenção. Se for numa plantação de feijão, o trabalho de catar o feijão, bater, debulhar, tudo isso é um trabalho produtivo, por mais que não seja visto dessa forma, como trabalho produtivo. É interessante observar que, por exemplo, o trabalho de criar galinhas de produzir ovos, normalmente é chamado de trabalho da mulher, ou seja, é o trabalho reprodutivo. Quando a gente fala trabalho reprodutivo a gente já está dizendo, é o trabalho que as mulheres fazem. Contudo, quando este trabalho reprodutivo, por exemplo, uma produção de aves ou ovos, começa a dar muito dinheiro, passa a ser um trabalho produtivo, ou seja eu tô produzindo alimento, produzindo recurso.


Irpaa - Tanto no meio urbano, quanto no meio rural existe uma presença muito forte do trabalho feminino, porém este trabalho não tem seu devido valor. Qual a realidade enfrentada pelas mulheres rurais do Brasil?

Simone Santarém - A origem da nossa sociedade é rural. Nós tínhamos os grupos nômades que moviam-se em busca de alimentos até a descoberta da agricultura, descoberta feita pelas mulheres, elas descobrem que ao colocar algumas sementes e frutos no solo nascem novas plantas e assim inicia-se o cultivo dos alimentos. Portanto não havia mais necessidade de se mover em busca de alimentação e inicia-se então o que nós poderíamos chamar de as primeiras comunidades. Nessas comunidades o trabalho era coletivo, não existia uma divisão do que era trabalho de mulher e de homem. Com a chegada do feudalismo nós temos uma expansão das propriedades rurais, que faz com que haja uma expulsão desses homens e mulheres que têm que ir para a cidade. Ao chegarem na cidade vai haver uma disputa pelos postos de trabalho. Não havia trabalho para toda essa gente que estava vindo do campo. Então houve o que nós chamamos de divisão sexual do trabalho: a mulher vai fazer o trabalho de casa, o trabalho doméstico, ou seja, o trabalho reprodutivo e o homem vai para o trabalho produtivo, vai para a geração de bens e consumo, vai para a geração de dinheiro. Já existia ali o início do capitalismo. Quem tem valia dentro do capitalismo? Quem gera dinheiro. Você vale o que você tem, o que você gerou. Então se nós pensarmos que os homens é quem estavam no chamado trabalho produtivo, gerando bens e serviços e trazendo dinheiro para dentro de casa, esse trabalho foi supervalorizado. E as mulheres estavam dentro das suas casas, cuidando das suas famílias, mas não geravam ou pelo menos não se pensava naquela época que se gerava dinheiro, portanto não era um trabalho valorizado. Apesar de que vale a ressalva de que desde sempre é o trabalho reprodutivo dessas mulheres, de manter a casa, de manter a alimentação, de manter todo esse ambiente, que possibilita que os homens exerçam seu trabalho produtivo. Imagine os homens saírem para produzir nas fábricas e, quando voltar, ter que cozinhar, arrumar a casa entre outras coisas. Não renderiam como rendem hoje.


Irpaa - De onde vem o costume de desvalorizar o trabalho feminino?

Simone Santarém - A realidade das mulheres rurais na América Latina ainda é a de ajudante, a mulher que ajuda o homem. “Eu estava na roça ajudando o meu marido”. A gente escuta muito esta frase e isso não é por autodepreciação, é por que a gente vem dessa cultura em que o trabalho da casa, ou seja, o trabalho reprodutivo é das mulheres e o trabalho produtivo, o trabalho do roçado, é dos homens. Mas como a gente falou anteriormente a mulher exerce o trabalho nos dois campos, ela faz o trabalho da casa que é reprodutivo e também o trabalho produtivo, porque ela vai plantar, ela vai colher… Mas a realidade ainda é desse papel de ajudante, e não de trabalhadora rural, mesmo que nós tenhamos dados que mostram o contrário, mostram o protagonismo das mulheres, mostram a presença das mulheres no campo, como por exemplo o senso de 2016, que mostrou que quase um milhão de propriedades no Brasil são gerenciadas por mulheres e desse quase um milhão, 57% estão no Nordeste. Então aqui na região Nordeste nós temos um número muito grande de propriedades rurais sendo gerenciadas pelas mulheres. Mas infelizmente continuamos com essa cultura, com essa maneira de pensar de que as mulheres são apenas ajudantes. Essa forma de pensar não é só de quem está no campo, não são só os homens ou as mulheres rurais que pensam dessa forma, é um todo que pensa. Quando há esse pensamento, que é necessário mudar, o que nós temos, consequentemente? Temos a falta de assistência técnica para as mulheres, temos falta de crédito, falta de titularização. A mulher não é vista como uma trabalhadora rural, se ela não é vista como trabalhadora rural, ela não tem por que ter esses direitos: crédito, assistência, titularização.


Irpaa - É possível falar em evolução nas relações de gênero e trabalho no Semiárido, tendo como base as últimas décadas? Ou seja, trabalho da mulher tem uma valorização melhor?

Simone Santarém - A realidade tem nos mostrado que as mulheres têm feito uma caminhada com resultados muito positivos. Se nós formos pensar, até os anos 80 as mulheres nem eram filiadas às confederações da agricultura, não tinham nenhum reconhecimento. Então a gente começa uma organização muito forte nos anos 80, pelas influências de Margarida Alves e de outras mulheres. Nos anos 80 a gente tem o início dessas organizações femininas. Hoje a gente encontra as mulheres na liderança de organizações, a gente vê as mulheres na gestão das propriedades, a gente vê políticas públicas para as mulheres. Obviamente, a depender do momento, há maior efervescência dessas políticas. Isso depende muito do momento político, infelizmente. A gente começa a ver com muito mais frequência a presença das mulheres nas feiras comercializando. A própria caderneta¹ mostrando a importância do trabalho feminino. Eu acredito que tudo isso que já conseguimos enquanto mulheres fortalece a luta que temos e ainda teremos pela igualdade de gênero. Claro que no momento estamos vivendo uma situação que nos preocupa, porque há uma tentativa de destruir tudo que tenha sido feito para ter essa base sólida para a caminhada futura das mulheres. Mas eu permanecerei acreditando que tudo o que nós construímos, que todos esses quarenta anos de construção serão muito mais sólidos e nos manterão na luta do que essas forças que tentam a destruição. Eu acredito muito na organização das mulheres rurais para que a gente possa continuar caminhando passo a passo em busca da igualdade de gênero.

¹ caderneta agroecológica – ferramenta que consiste na anotação dos resultados monetários e não-monetários advindos do trabalho feminino.


Irpaa - Quais são as ações desenvolvidas e os objetivos a serem alcançados pela campanha “Mulheres Rurais, Mulheres com Direitos”?

Simone Santarém - A campanha Mulheres Rurais iniciou em 2015 e o primeiro tema, a primeira grande discussão foi justamente esse papel da mulher na agricultura. O primeiro tema era: “Sou trabalhadora, não sou ajudante”. A partir desse início, em 2015, que era para mostrar que a mulher rural é uma trabalhadora, não é uma ajudante, a gente vem trabalhando para mostrar o trabalho feminino, para mostrar a importância do trabalho das mulheres, seja mostrando que essas mulheres fazem também uma parcela significativa do trabalho de produção, seja com o trabalho reprodutivo. É através do trabalho da mulher, de ficar em casa, de cuidar dos filhos, de gestar, que a gente pode falar em sucessão rural. Não é possível falar em sucessão rural e manutenção no campo sem esse trabalho das mulheres. A campanha é para mostrar que as mulheres fazem o trabalho reprodutivo, mas é também para mostrar a importância do trabalho doméstico. Sem este trabalho, o trabalho produtivo, não ocorre da mesma forma. Vamos imaginar que um homem tenha que sair para o roçado trabalhar, mas que ele vai chegar em casa e não vai ter comida pronta, um ambiente para o descanso para repor suas energias e depois voltar para o campo, ele vai ter que cuidar dos filhos, se ele assim desejar ter filhos ele também tem que ter esse trabalho. Então a energia que ele vai gastar no seu trabalho no campo não vai ser a mesma […] A campanha vem para valorizar, reconhecer o trabalho da mulher rural.

 

Irpaa - É possível acreditar em um cenário onde o trabalho de mulheres e homens teria a mesma valorização?

Simone Santarém - Eu percebo que nós estamos caminhando. Ainda há muito o que se conquistar, isso é fato, isso todas nós mulheres sentimos no dia a dia. Nós precisamos desconstruir toda essa estrutura patriarcal que coloca que o homem não pode dividir as tarefas domésticas, que se fizer isso perdem sua dignidade, seu respeito. Então há uma necessidade de quebrar essa estrutura, de destruir toda a estrutura patriarcal para construir uma estrutura onde haja uma igualdade de gênero entre homens e mulheres. Contudo, quando a gente observa o número de propriedades dirigidas por mulheres, quando a gente observar políticas públicas que foram concretizadas, que foram elaboradas, que foram implantadas para o reconhecimento do trabalho feminino, como por exemplo, o Pronaf² Mulher, o Pronaf Agroindústria, que apesar de ser para homem e para mulher foi muito mais acessado pelas mulheres, o Ater³ Mulher, as próprias organizações de mulheres, os movimentos como a Marcha das Margaridas, a gente percebe que há uma evolução e que o trabalho da mulher passa a ser valorizado. Quando eu tenho o Governo Federal lançando uma Ater específica para as mulheres, ele está dizendo que esse trabalho merece uma política pública, na verdade carece de uma política pública. Aqui no Semiárido nós tivemos nos últimos tempos um instrumento que tem permitido mostrar a valorização do trabalho feminino, que são as cadernetas agroecológicas. Através dessas cadernetas nós conseguimos mostrar, no papel e em reais, que o trabalho, dito de mulher, ou seja, o trabalho reprodutivo, também é produtivo, porque gera renda. No final do mês quando a mulher contabiliza todo o trabalho dela de horta, criação de pequenos animais e ela diz “eu gerei 500 reais”, por exemplo, ela está valorizando aquele trabalho que ela fez porque esse trabalho começa a entrar na lógica do trabalho produtivo.

² Pronaf – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
³ Ater – Assessoria/Assistência Técnica e Extensão Rural
 


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