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Por que não é viável criar bois no Semiárido?

Por que não é viável criar bois no Semiárido?

A criação animal é uma das atividades humanas que faz parte da história dos povos do Semiárido. Cabras, ovelhas e bodes – animais de pequeno porte – estão na base da convivência das famílias camponesas com a região. Na cultura popular, são as figuras do vaqueiro e do boi que permeiam das artes às festividades do sertanejo e da sertaneja. Também estão nos noticiários e nos documentários que, por vezes descontextualizados, constroem uma realidade que coloca nas estiagens a culpa pelas carcaças de boi espalhadas pelo sertão. “É a seca.” Será mesmo?

“A região do nosso Semiárido é característica pelas chuvas menores que a evapotranspiração – então você tem um déficit hídrico e boa parte do ano vai estar seco. A pecuária é mais adequada quando ela vive do pasto nativo”, é o que afirma José Moacir dos Santos, presidente do Conselho de Segurança Alimentar (Consea) da Bahia pelo Irpaa, organização da qual é Coordenador do Eixo Produção Agropecuária e Extrativismo. Para Moacir, diante de um cenário geral, os animais de pequeno porte podem viver de pasto nativo, não necessitando de lavoura cultivada ou de ração comprada. A realidade da criação, importante acrescentar, é de uma lotação de unidades animais acima do que o pasto nativo comporta. Há mais animais do que um hectare do Semiárido pode oferecer. Num cenário de seca, as famílias agricultoras que possuem criação de pequeno porte estarão mais bem adaptadas e os animais não sofrerão tanto com a falta de alimentação que gera as conhecidas imagens de carcaças tão difundidas pela mídia ao abordar as estiagens. Isso também evita a compra de alimentação como o farelo de soja. Produzido em larga escala através do uso de agrotóxicos em plantações transgênicas, a ração a base desse farelo põe em risco a qualidade dos produtos como carne e leite, a saúde da agricultora e do agricultor e a expansão dessas monoculturas devastadoras sobre os biomas da região.

A criação de bois e vacas precisa de uma grande quantidade de água e terra com pasto para ser viável; diferente da pecuária baseada na criação de pequeno porte, como a de cabras, bodes e ovelhas. De acordo com a cartilha produzida pelo Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada - Irpaa para criação de cabras “a quantidade e qualidade do pasto [necessário para a criação] depende das condições de solo, quantidade de chuva e tratos culturais. Cada região tem seu potencial produtivo diferenciado.” Se consideramos uma quantidade próxima de consumo de pasto entre os dois tipos de criação, ainda segundo a entidade, uma vaca consome o mesmo que 8 cabras – que, por sua vez, produzem mais leite e têm mais crias durante o ano.


O Semiárido brasileiro tem animais nativos de pequeno porte, diferente de outras regiões no mundo. A região e seu pasto nativo, que é formado pela vegetação da Caatinga e do Cerrado, naturalmente, não suportam a criação de animais de grande porte, principalmente nas épocas do ano em que essa vegetação não é verde e não oferece alimentação adequada. Embora haja áreas bem irrigadas e que poderiam suprir a demanda por mais pasto, elas só correspondem a 3% do Semiárido e estão em sua maioria ocupadas pelos modelos do agronegócio.

Mas essa não é a única questão. “O boi, vive em regiões que têm capim, como há em grandes quantidades nas savanas da África. A Caatinga não oferece naturalmente esse capim. Inicialmente, na ocupação dessas terras, o vaqueiro botava fogo na vegetação. Havia além do objetivo de queimar os cactos para o boi comer, a necessidade de criar pastos com capim... E assim o boi foi degradando a Caatinga ao longo do tempo”, diz Moacir quando acrescenta que os animais de grande porte trazem para a Caatinga o problema do desmatamento e, por conseguinte, da desertificação.

Tem a mesma opinião Francisco de Assis Batista, que é diretor da Associação Cristã de Base – ACB, no Crato/CE, e também criador de caprinos na Chapada do Araripe. “Pra gado tem que desmatar. Nós começamos estudando os sistemas agroflorestais – isso foi o que nos incentivou e nos mostrou, quando a gente avalia nossa vegetação, que ela não comporta o animal de grande porte. Nossa Caatinga é mais fechada, é mais tortuosa [do que as savanas africanas]. Não dá para um touro ficar passando por ela. Teria que abrir [desmatar] pra ele passar.”

Seu Batista, como é conhecido, cria caprinos e percebeu desde o início que sua propriedade, localizada na parte de cima da chapada, não oferece água ou pasto suficiente para a criação de animais de grande porte. Além disso, o manejo deles precisa de mais pessoas, trabalhadores muitas vezes contratados, o que não é uma realidade das famílias agricultoras. “A cabra é um animal mais rústico, que come até folhas secas. É mais fácil de cuidar. Você pode soltar e ele se alimenta do que a Caatinga tem. É uma criação de capoeira.”

Para Francisca Gomes de Souza, conhecida como Betânia, agricultora do Sítio Samambaia, na região de Araripina/PE, a criação de gado enfrenta problemas tanto por causa do manejo mais dedicado quanto por causa da escassez de pasto e água. Ela e seu esposo, Seu Severino, possuem oito cabeças de gado, grupo que já foi maior, mas que não resistiu às estiagens dos seis últimos anos. A família usa o estrume gerado pelos bois e vacas para a horta onde cultivam a produção vendida na Feira Agroecológica de Araripina. A água do local vem de uma cisterna de 52 mil litros e de um poço. É a água usada tanto para irrigação da horta quanto para a criação animal – que também inclui cabras e ovelhas. Embora a manutenção dos bois e vacas tenha a ver com a adubação da roça (o que evita a compra de adubo de terceiros), Betânia não tem dúvida quando perguntada sobre qual rebanho é mais fácil manter. “Nós criamos animais há muito tempo e daí já dá uma noção do que dá mais trabalho. A cabra, sem dúvidas, é melhor criar pois come menos e dá menos trabalho. O gado talvez seria uma poupança se não houvesse perda por causa da seca. Nós criamos o gado solto. Não é todo mundo que tem pasto e se não tem chuva não tem pasto.”

Seu João Simão dos Santos, agricultor do Sítio Jenipapo (próximo ao Crato/CE), tem um pensamento que também converge nesse sentido. Homem de poucas palavras e de uma simpatia acolhedora, ele tem mais de 70 galinhas, 10 porcos e 8 ovelhas. Ele não cria bois e vacas. “Onde a cabra passa uma semana se alimentando, o boi só passa um dia.” Ele planejou o rebanho pensando no tamanho da sua propriedade e na quantidade de água que tem disponível. No entanto, as estiagens dos últimos anos também trouxeram situações de dificuldade para o agricultor. Emocionado, ele contou que em alguns momentos foi muito difícil por falta de pasto suficiente. O ganho continua pouco, mas Seu João não desiste do manejo de animais. “Gosto de vê-los bonitos!”

“Agronegocinho” – José Moacir e Seu Batista apontaram uma terceira questão sobre a cultura do gado no Semiárido. “Imprime-se uma ideia de poder”, diz Seu Batista. “Existe uma ideia de agronegocinho”, nota Moacir. As duas falas vão ao mesmo sentido: um movimento contrário às lutas camponesas e à agricultura familiar de base agroecológica. Por vezes, as relações de poder estabelecidas influenciam na ideia de que ter e manter o gado coloca o agricultor ou agricultora em um outro lugar e isso pode acabar afastando ou enfraquecendo a própria ideia de agricultura familiar. Quando os rebanhos de ovinos e caprinos diminuem nas estiagens é porque são muitas vezes vendidos para gerar recurso para comprar ração, como a de farelo de soja do agronegócio, para alimentar somente por alguns meses os bois e as vacas. É preciso repensar a viabilidade desse manejo no Semiárido.
 

Texto: Hugo de Lima - Asacom Foto: comunicação Irpaa

 


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