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Lições do semiárido brasileiro nessa encruzilhada histórica do século 21

Lições do semiárido brasileiro nessa encruzilhada histórica do século 21

“É no semiárido que a vida pulsa! É no semiárido que o povo resiste!”, diz a Articulação Semiárido Brasileiro (Asa), rede da sociedade civil constituída na região na década de 1990. Um dos marcos da história de mobilização social que deu origem à Asa foi a ocupação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) em 1993 para denunciar a ausência de políticas adequadas para enfrentar os efeitos da seca que acontecia naqueles anos.

Seca é seca. Falta de água é política

Nesta seca dos anos 1990, quase não havia políticas do governo para as comunidades camponesas, obras e frentes de trabalho sob o rótulo de combate à seca ainda serviam aos coronéis que controlavam a política no sertão, direitos sociais eram negados para a maioria da população. Nesses primeiros anos da redemocratização da sociedade brasileira, as veias abertas pela ditadura militar ainda causavam muito sofrimento ao povo do semiárido.

Na grande estiagem ocorrida entre 1979 e 1983, estima-se que mais de um milhão de pessoas morreram em decorrência dos efeitos da seca, a grande maioria crianças. Este drama humano de enormes proporções está registrado no livro “O Genocídio do Nordeste”. Enquanto isso, na cidade de São Paulo havia, nos hospitais, alas para crianças em estado de desnutrição, como conta Drauzio Varella.

O papel protetor da democracia

Desconhecidas por muita gente, as mudanças positivas no semiárido brasileiro desde a ocupação da Sudene nos remetem à ideia do papel protetor da democracia, enunciada pelo economista e ganhador do prêmio Nobel, Amartya Sem, ao estudar fomes coletivas em várias partes do mundo.

A Asa passou a defender a ideia de convivência com o semiárido em oposição à lógica de combate à seca, e formulou o ambicioso Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) para construir cisternas de placas em formato cilíndrico com capacidade de armazenar 16 mil litros de água captada dos telhados, usada para beber, cozinhar, lavar as mãos e tomar banho. A ideia virou política pública abrangente com a instituição do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) em 2003, no início do governo Lula. Desde então, a meta de construir mais de um milhão de cisternas foi atingida com recursos do orçamento federal destinados às organizações que trabalham diretamente nas comunidades rurais. Com as cisternas, as famílias conquistaram saúde e as mulheres, liberdade, não mais precisavam andar longas distâncias e gastar tanto tempo para pegar água de qualidade ruim.

Avançando mais, a Asa formulou o Programa Uma Terra e Duas Águas (P1+2) para construir cisternas de 52 mil litros, barreiros e outras tecnologias sociais para as comunidades estocarem mais água para produzir alimentos. Cerca de 200 mil infraestruturas desse tipo foram construídas em todo o semiárido. Além do P1MC e do P1+2, premiados internacionalmente, outras soluções foram apoiadas por políticas públicas, como os bancos comunitários de sementes crioulas, aquelas variedades adaptadas à ecologia da região e cuidadas há gerações pelas comunidades.

Diversas outras políticas também contribuíram, como projetos de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) com base na agroecologia; o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da agricultura familiar para doação de alimentos a pessoas em insegurança alimentar; o programa Luz para Todos; a crescente cobertura da previdência social rural e programas de transferências de renda como o salário maternidade e o Bolsa Família. Governos estaduais também fizeram sua parte com programas abrangentes e participativos, como o Projeto Pró-semiárido, na Bahia.

Este ciclo virtuoso de políticas públicas foi decisivo para que, em 2014, o Brasil deixasse o Mapa da Fome da Onu. Isso aconteceu porque as políticas não somente investiram nas infraestruturas – construídas pelos próprios beneficiários, diga-se de passagem, mas principalmente em educação para conviver com o semiárido, para produzir alimentos, não usando adubos químicos e agrotóxicos, mas valorizando os recursos e conhecimentos locais. Assim, ao fortalecer o capital social nos territórios, as políticas fizeram o contraponto ao clientelismo político que se alimenta dos mecanismos históricos de dominação e exclusão.

Tive oportunidade de documentar resultados positivos desse ciclo em pesquisa de doutorado no sertão do São Francisco, na Bahia. Ao estudar a economia de famílias agricultoras com práticas agroecológicas apoiadas por políticas públicas, verifiquei que, mesmo depois de uma seca severa de seis anos (2012 a 2018), elas produziram fartura e diversidade tanto para autoconsumo, doações nas comunidades e vendas nos mercados locais. A renda agrícola anual média de 12 famílias estudadas foi R$ 16.760, o que representou 45% da renda total das famílias. Essa riqueza foi fruto de trabalho das famílias e do capital ecológico local, com baixo consumo de insumos externos. Os custos de produção representaram somente 20% da renda bruta, o que indica elevada autonomia. A produção para autoconsumo e doações nas comunidades representou R$ 7.500, uma economia em geral desconsiderada, mas muito importante para a segurança alimentar. Muitas famílias produziram em um ano mais de 30 tipos de alimentos diferentes: frutas, legumes, verduras, feijão, milho, farinha de mandioca, ovos, mel, queijos e carnes.

Outra pesquisa realizada em 2017 com dez famílias mostrou que o P1+2 contribuiu para um aumento de 32% na renda familiar. As experiências das famílias envolvidas nas duas pesquisas não são casos excepcionais, sabemos que é muito significativo o número de famílias no semiárido que foram beneficiárias diretas das políticas públicas mencionadas e que participam das redes de agroecologia nos territórios. Isso explica a carta do encontro da Asa em 2016: “Vivemos hoje o quinto ano de uma estiagem ainda mais severa e nenhum ser humano teve sua vida ceifada pelos efeitos da seca”.

Descaso e desmontes

Infelizmente, este conjunto de políticas públicas foi duramente golpeado desde 2016, ainda mais violentamente com a chegada da extrema direita ao governo federal em 2019. O programa de cisternas foi totalmente destruído. Para se ter uma ideia, em 2014 foram construídas 110 mil cisternas de 16 mil litros e 35 mil tecnologias de captação de água para produção. Em 2020, esse número não chegou a três mil. O desmonte do programa de cisternas, a extinção do Consea em 2019, outros incontáveis ataques às políticas públicas de segurança alimentar e a desastrosa condução da pandemia pelo governo federal agravaram a situação de miséria e fome no país nos últimos três anos. No Brasil, 19 milhões de pessoas passam fome. No nordeste, 13,8% das famílias estão nessa condição.

No semiárido, apesar da gravidade da crise atual e de muitas regiões sofrerem com uma seca severa em 2021, o que explica não haver outra tragédia humanitária de proporções gigantescas são a capacidade de resistência e organização das comunidades, as ações de solidariedade dos movimentos sociais e os efeitos positivos de políticas federais anteriores e de boas políticas de governos estaduais e municipais.

No entanto, a Asa estima que cerca de 350 mil famílias das áreas rurais do semiárido ainda não contam com cisterna para armazenar água para consumo doméstico, e mais de 800 mil poderiam se beneficiar da continuidade do P1+2 e aumentar a produção de alimentos.

Oxalá este ciclo de devastação das políticas públicas esteja perto do fim. Precisamos apostar na organização popular e debater propostas de reconstrução desse país golpeado. Isso implica inventar formas de seguir fortalecendo as lutas pela democratização do acesso à água de qualidade para todas as famílias do semiárido.

Este é o objetivo da Campanha Tenho Sede, lançada recentemente pela Asa, que merece todo o nosso apoio. Afinal, como ensina o povo do semiárido brasileiro, nada deve parecer impossível de mudar.

Texto: Denis Monteiro- Le Monde diplomatique Brasil
Foto: Divulgação
 


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