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A cisterna é um objeto político e pedagógico, afirma pesquisadora da Unicamp

A cisterna é um objeto político e pedagógico, afirma pesquisadora da Unicamp

Uma conquista e um exemplo do protagonismo das organizações sociais do Semiárido, o Programa Cisternas preparou parte das populações rurais contra esta e epidemias futuras, ao favorecer que estoquem água ao lado de casa para higiene básica. O fortalecimento desse protagonismo civil poderia ser uma resposta em diversas frentes e por longo prazo aos efeitos da atual pandemia e para diversos problemas de saúde que as brasileiras e os brasileiros enfrentam, mas o governo federal atual preferiu o autoritarismo ao diálogo com os setores sociais que há décadas escrevem um novo paradigma de convivência com a região.

A geógrafa e pesquisadora Kezia Andrade defendeu sua dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ensino e História de Ciências da Terra da Unicamp, em fevereiro. Ela trabalhou na Secretaria de Educação do município de Mucugê, no Semiárido baiano, numa ação de acompanhamento à implantação de 19 tecnologias do Programa Cisternas nas Escolas. Foi uma das inspirações para a pesquisam, intitulada "Programa Cisternas nas Escolas e sua contribuição para a convivência com a seca no Semiárido Brasileiro". O programa da Articulação Semiárido Brasileiro já contemplou 7135 escolas rurais em todo o Semiárido.

A geógrafa é baiana de Mucugê. Defende uma educação mais justa, uma educação de qualidade. Ela se reconhece nas lutas pelos direitos ao acesso à água e acesso à terra e sonha com um mundo melhor. Acompanhe, na entrevista, as descobertas, inclusive de transformação do olhar pessoal. Elas evidenciam que, para um Semiárido Vivo, é preciso ter em vista um protagonismo social e “uma educação contextualizada como marco importantíssimo”.

Asacom – Você pode resumir o que te incentivou/cativou a realizar essa pesquisa?

Kezia – O que me incentivou fazer a pesquisa foi poder ver o Semiárido com um novo olhar. Quando eu estive na graduação, eu sabia o que era o ambiente do Semiárido, eu estudei um pouco sobre o Semiárido, mas eu não sabia de fato a realidade do Semiárido. Qual era meu objetivo de pesquisa na graduação? Aprofundar um pouco sobre essa região. Quando eu fui para o mercado de trabalho e estive na Secretaria Municipal de Mucugê, eu tive contato com o Programa Cisternas e tive uma nova visão do que realmente é a região. Embora meu município esteja no Semiárido, eu não considerava como parte integrante. Eu pude ter uma nova visão, sobre quem é seu povo e como se dão as questões ambientais, políticas e sociais. Junto com meu orientador, a gente percebeu que tinha poucas pesquisas relacionadas ao Programa Cisternas e a gente resolveu aprofundar. Foi um projeto [o Cisternas] que eu gostei muito – eu me senti pertencente ao projeto!

Asacom – O que foi evidenciado na sua pesquisa?

Kezia – O que foi evidenciado na minha pesquisa é que o Programa Cisternas contribui para ressignificar o fenômeno da seca através da convivência com o ambiente semiárido, com um sentimento de pertencimento da população e um empoderamento na relação dos direitos e garantias frente ao acesso à água e o acesso à terra. Através desses mecanismos, a população consegue entender como é o fenômeno da seca, como ele é um fenômeno natural que não pode ser combatido e como é possível uma convivência no período em que se tem o fenômeno da seca. A partir do momento que a população percebe que pode ter o direito à água garantido, muda-se o olhar da convivência. Não é um favor que um político me dá, não é um favor que a população tem que implorar – é algo garantido. Então, a partir desses fatores, você tem a contribuição pra ressignificar o fenômeno da seca, que sempre vai ocorrer devido às condições climáticas. É possível conviver de forma harmoniosa e de forma digna nesse ambiente. É essa ressignificação. E isso é feito através da educação contextualizada, do protagonismo social, do sentimento de pertencimento. Através desse conjunto de fatores, a gente consegue ressignificar.

Asacom – Sua pesquisa foi realizada tomando como amostra as escolas rurais que receberam uma cisterna em Mucugê. Do ponto de vista social, o que mudou nas escolas que conquistaram a tecnologia?

Kezia – No município de Mucugê mudou muita coisa. Você tem a cisterna, você tem a criança olhando pra cisterna como algo que é da escola, que é da comunidade, entendendo como é a cisterna, como é a distribuição da água, do acesso à água. Embora seja um município em que chove mais do que em outras regiões do Semiárido, há uma dificuldade no acesso à água – porque há um grande jogo político para monopólio do acesso à água para as grandes fazendas do agronegócio. Do ponto de vista social, os alunos [da escola atendida] perceberam o quanto é importante aprender sobre o Semiárido, sobre a região em que estão inseridos, aprender o quanto esses assuntos são interessantes para ver a realidade deles. [Outra mudança] foi a partir do momento que os professores passam a enxergar a educação contextualizada como uma ferramenta preciosa para o ensino-aprendizagem, como algo que pode mudar a história do município, a vida dos alunos e vice-versa – uma construção participativa.

Asacom – Do ponto de vista da comunidade escolar como um todo, o que as pessoas passaram a perceber com a chegada da cisterna?

Kezia – A partir da pesquisa e das análises feitas, no estudo de caso, a gente percebeu que a própria comunidade, ela começou a pensar mais sobre o acesso à água, o seu direito garantido. Sobre como ela pode ajudar a própria comunidade, como ela pode cuidar desse recurso e como ela pode, através da própria cisterna sendo implantada na escola, ver quais são os direitos que a escola tem e que eles têm enquanto comunidade. Então, a chegada da cisterna, ela traz esse novo olhar, ela traz o olhar de que eu tenho direito ao acesso à água, eu tenho direito ao acesso à terra. Isso vai mudando a cabeça do pequeno agricultor, vai mudando a cabeça de toda comunidade que está ali inserida. Isso traz uma vivência de que o ambiente Semiárido, ele precisa ser melhor conhecido. Então, eles perceberam que o ambiente em que eles estão inseridos é muito rico e que muitas vezes o que tinham passado é de que eram pobres, eles não tinham direito a nada e isso tava sendo perpetuado de geração em geração. Com a chegada das cisternas, com a chegada das capacitações, a gente percebe esse novo olhar. É como se fosse uma chave mudando a visão da população frente aos seus direitos. Então, isso é muito enriquecedor, isso é muito vasto para ser ampliado, sabe?

Asacom – Você chegou a afirmar na sua pesquisa que o Programa Cisternas nas Escolas colaborou para o desenvolvimento regional de forma sustentável e participativa por meio do protagonismo social das populações rurais. Pode explicar?

Kezia – O Programa Cisternas colabora pra o desenvolvimento regional a partir do protagonismo social, por meio do empoderamento mesmo, por meio da participação ativa da população sobre o ambiente em que está inserido, sobre o poder de voz em relação ao que se pode plantar ou não naquele ambiente, porque quem está inserido sabe muito sobre o ambiente e muitas vezes essas vozes eram caladas. Então, eles não tinham um poder de voz. Era como se o conhecimento deles fosse jogado pro lixo. Então, eles não tinham voz, os conhecimentos deles eram deixados de escanteio e eles estavam inseridos naquele ambiente. O desenvolvimento regional a partir da potencialidade, do que o bioma da Caatinga traz, das potencialidades das próprias frutas, do que pode ser plantado, do que pode ser produzido para o melhor desenvolvimento das espécies, da própria adaptação frente ao bioma da Caatinga é um desenvolvimento regional sustentável. E pra essa população rural, saber cada vez mais que ela tá inserida nesse contexto de pertencimento, saber que ela tem voz, que o conhecimento dela não é nulo, há um maior desenvolvimento. Então você tem cooperativas, você tem pequenos produtores criando, formando novas ideias, trocando experiências de manejo do solo de forma correta. Então, tudo isso contribui para que haja realmente um desenvolvimento regional forte. E que, o que pode ser produzido lá e que é do próprio ambiente, ele possa ter valor no próprio comércio regional, nas próprias feiras, na própria população e pra fora também.

Asacom – Você vislumbra uma diferença se fosse implantado SEM esse protagonismo social?

Kezia – Com certeza haveria uma grande diferença, porque a partir do momento em que a população não tem voz, é uma técnica que vai ser implantada no seu lugar de pertencimento e que você não vai saber como isso vai ser gerado. Você não vai saber como isso vai ser executado, vai chegar algo para você, mas você não tem o direito de falar, você não tem o direito de opinar, não tem o direito de conhecer, saber se realmente aquilo é adequado à região, ou não. Isso já acontece há muitos anos no Semiárido, desde as primeiras políticas, do período da República em que os governantes tinham as medidas e não procuravam a população para saber o que era melhor para a população. Então, havia muito interesse político para os grandes proprietários de terra, não para a população em geral. A partir do momento em que você dá voz a população, traz ela com o sentimento de “não! Você faz parte desse projeto, a sua voz tem participação ativa no projeto!”, você dá o sentimento de que aquilo poder ser o melhor para eles. Você tem como explicar da melhor forma, assim como eles têm também como explicar qual a melhor forma para quem tá levando essa técnica, entendeu? Pra quem tá levando a implantação da própria cisterna. Porque a cisterna, ela não é só um objeto. Ela é um objeto político, pedagógico. Então, ela é muito mais além do que implantar uma cisterna numa escola, construir. Ela trabalha por outro viés, o da educação, o viés social e traz o protagonismo da questão do valor cidadão, sobre o ambiente em que eles estão inseridos.

Asacom – A ação de construção de cisternas, incluindo nas escolas, foi implantada pela sociedade civil num diálogo que também inclui o poder público desde a época do governo Fernando Henrique Cardoso. Você já explicou a importância desse protagonismo, mas o que significa o enfraquecimento desse diálogo por parte do poder público? Será que o Semiárido pode ficar a mercê das velhas políticas de combate à seca?

Kezia – O enfraquecimento em geral é muito aterrorizante, porque é a partir do diálogo que a gente conseguiu essa política pública. Foi a partir das populações, da sociedade civil, que elas perceberam que elas têm voz ativa na sociedade, que elas podem falar o que é melhor para o ambiente delas, porque elas convivem nesse ambiente, elas vivem lá e ninguém melhor do que elas pra saber o que realmente pode ser feito lá. Quando a gente quebra esse diálogo entre a população e os detentores do poder, a gente fica a mercê mesmo de velhas políticas públicas, a mercê de só uma pessoa que pode mandar e o restante não tem voz ativa. A gente fica preocupado, porque é muito triste essa realidade da gente poder imaginar que as velhas políticas que foram empregadas durante séculos, elas podem voltar pra sociedade, sendo que a gente já conseguiu avançar grandes passos com a convivência no ambiente.

Asacom – Não é possível a gente fazer uma entrevista em tempos de pandemia de coronavírus sem perguntar sobre a importância fundamental da autonomia sobre a água e a maior disponibilidade de ações de saneamento básico conquistado pelas escolas a partir da política pública de cisternas. No entanto, o governo federal reduziu drasticamente os recursos para esta ação de convivência. Gostaria de comentar o que isso significa pra quem ainda não foi atendido?

Kezia – É muito triste, para quem ainda não foi atendido, não poder ter esperança de que a cisterna vai chegar na sua casa. A gente tá vivendo uma pandemia mundial em que a água é essencial pra que se combata esse vírus, através da higiene mesmo, de cada pessoa, de cada indivíduo. A partir do momento em que as pessoas não têm acesso à água, isso aumenta a potencialidade do vírus, de infectar essas pessoas. Então, imagine no Semiárido brasileiro, onde muita gente ainda tá esperando uma cisterna, tá esperando a água chegar de fato, não ter essa tecnologia, não ter esse direito garantido? Elas estão muito mais expostas a essa vulnerabilidade mesmo, de poderem contrair o vírus e sem saber como se proteger. Então, é muito importante que o governo ele mantenha esse programa, ele mantenha os recursos disponíveis para esse programa. A partir do momento que há uma drástica redução do investimento, muitas pessoas vão deixar de serem beneficiadas, isso traz um atraso de vida muito grande nessa política pública. Então, as políticas públicas, elas têm que ter começo, meio e fim. E o fim, não é parar a política, é reinventar novas formas de atuação. E, o que o governo acaba querendo fazer é uma diminuição drástica desse recurso, fazendo com que menos pessoas sejam favorecidas, sendo que a gente tem ainda uma quantidade enorme de pessoas que necessitam desse programa, dessa cisterna escolar. Escolas que não têm acesso à água de fato. Então, isso é muito preocupante. Muito triste, na verdade, né? Então, é o momento das organizações, de nós que lutamos, fazer esses direitos estarem consolidados ainda mais para enfrentar essa grande barreira que tem sido imposta para as pessoas no Semiárido.

Asacom – Você trabalhou junto a implantação de algumas cisternas. Acompanhou de perto como elas chegam e impactam a vida social e emocional das pessoas. Dá pra trazer alguma história que te emocionou de forma particular?

Kezia – Realmente foram vários momentos que me emocionaram, mas um, eu tipo, eu guardo comigo mesmo, no meu coração, é quando eu estava em uma escola e a gente estava resolvendo um problema relacionado a questão da cisterna, dos materiais chegarem naquela escola e do nada veio um aluno. Ele tinha uma necessidade especial, ele não conseguia andar muito bem e eu tava muito agitada, já me despedindo da escola, do programa de cisternas, e aí do nada, ele vem correndo, assim cambaleando, e ele vem e me abraça, abraça minhas pernas e olha assim pra mim com um olhar… “obrigada por vocês estarem aqui, obrigada por você enxergar que nós estamos aqui”. Então, aquilo me emocionou muito. Eu chorei muito naquele dia e foi um aprendizado que eu carrego até hoje – o quanto é importante a gente olhar para essas pessoas, o quanto é importante a gente falar quem são essas pessoas e porque elas têm a voz, entendeu? Então, foi algo que me emocionou muito. Assim, eu lembro exatamente do olhar daquela criança pra mim, agradecendo, do jeito dela, na chegada da cisterna.

Asacom – Que outros dados ou destaques você gostaria de fazer?

Kezia – Pra mim, foi uma honra ter tido a oportunidade de escrever sobre esse programa. Foi um programa que trouxe muito conhecimento pra mim, sobre o próprio Semiárido, porque eu não tinha esse conhecimento. Tive a oportunidade de pesquisar, de falar sobre a população com o olhar de quem é a própria população do Semiárido, porque eu sou integrante do Semiárido brasileiro, só que eu não me via como integrante do Semiárido brasileiro. Então, isso é muito riquíssimo, trazer essa perspectiva pra uma universidade que pouco se fala sobre o Semiárido, porque a gente tá falando da Unicamp, a Unicamp tem outros tipos de pesquisas. Então, a gente tá começando agora a trazer para os grupos de pesquisa e aos programas de pós-graduação essa discussão sobre o Semiárido, o que é o Semiárido e trazer esse olhar da educação contextualizada como marco importantíssimo que tem que acontecer no Semiárido. Algo que deve ser propagado de maneira absurda. Então, isso é muito relevante. É muito gratificante também ver o quanto as pessoas estão interessadas sobre essa pesquisa, [o quanto a pesquisa] tem ganhado destaque na própria Unicamp. Isso é muito gratificante, porque é falar da nossa história, falar de quem nós somos e o que nós queremos também.

 

Entrevista: Asacom / Fotos: Asacom e arquivo Pessoal 

 


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