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Não há água!

Não há água!

 O Rio São Francisco está morrendo. A afirmativa, angustiante para milhares de comunidades e milhões de pessoas que vivem e convivem com o Velho Chico, baseia-se na situação verificada ao longo de toda a bacia, que banha cinco estados e mais de 500 municípios brasileiros. Em toda sua extensão, os baixos níveis, ou mesmo a inexistência de água, associam-se ao assoreamento do leito e à ausência de matas em um alerta quanto à falta de ações que respondam à degradação que é resultante da exploração desenfreada da bacia.

“O prognóstico que especialistas fazem é de que a morte do São Francisco é inexorável”, relata Roberto Malvezzi, militante da Comissão Pastoral dos Pescadores (CPP) e Comissão Pastoral da Terra (CPT). Segundo ele, as pesquisas mostram que os aquíferos (formação ou grupo de formações geológicas que pode armazenar água subterrânea) do Cerrado estão muito prejudicados pelo desmatamento. “No entorno do rio, a flora que existia, exuberante, alta, praticamente já desapareceu. Isso é visto como um sinal de que o rio está perdendo força”, explica.

O que as informações acadêmicas indicam já está sendo sentido por todos e todas que vivem ao longo das margens. O efeito mais simbólico foi a interrupção do curso da nascente histórica, localizada no Parque da Serra da Canastra, em São Roque de Minas, Minas Gerais. O fenômeno, que nunca tinha sido registrado antes, durou dois meses, e serviu para chamar a atenção para a gravidade da situação.

Com as chuvas das últimas semanas, a nascente brotou novamente. Mas ao longo do curso do rio pouca coisa mudou. Maria Alice da Silva, 58, é pescadora e vive em Juazeiro. Segundo ela, o retorno da nascente traz esperança, mas não é suficiente: “Deu uma chuvinha e entrou um pouco de água. Antes da chuva a gente estava quase atravessando para Pernambuco a pé. A gente ia até mais do que o meio do rio com água pela cintura. A gente se animou mais com a notícia de que na nascente começou a brotar uma aguinha, mas é preciso fazer muito por esse rio”.

Convivência ribeirinha - Conhecida como Alice Pescadora, profissão que herdou do pai e o avô, ela cresceu convivendo com o São Francisco. Bebia de suas águas, e delas também tirava o alimento. Falando sobre a situação atual, ela demonstra tristeza e preocupação: “Destruição, desmatamento, as agressões que vêm sendo praticadas através das grandes empresas, transposições, é muita água que tiram desse rio sem as empresas terem a mínima preocupação em revitalizar, em repor o que eles tiram. Ao menos desassorear! Tiram a água, mas deixam o assoreamento”.

A pescadora conta que, devido à escassez de lugares para pescar, foi criado um sistema de revezamento com fichas: “Uma pessoa vai, 15 minutos depois vai outra”. Alice luta pela regularização dos territórios pesqueiros e pela revitalização do rio. “A gente que é pequeno tem muita força pra lutar, mas se sente impotente quando a gente luta e vê que o governo vai passando por cima como um rolo compressor”, lamenta.

José Acácio Sobrinho, de 80 anos, avalia que “a tendência é baixar mais com essas barragens e esses canais que estão abrindo. Não entra água, nem peixe.” Nascido e criado na aldeia Xocó da ilha de São Pedro, no município de Porto da Folha (SE), o indígena foi canoeiro por vinte anos, e se lembra do rio cheio e com muitos peixes, cujas enchentes permitiam inclusive o plantio de arroz.

“O tempo foi passando, e o rio foi baixando, com as barragens, e agora até para os barcos é uma dificuldade”, lembra Sobrinho. Membro da mesma aldeia, Anísio Xocó, 27, pescador, enfrenta muitas dificuldades para conseguir seu sustento: “Para pescar tem que esperar um dia e uma noite quando, na verdade, há dez anos atrás a gente saía e enchia o barco dentro de meia hora. A gente escolhia o peixe que queria vender, o que queria comer, o que queria pegar. Hoje, é o peixe que nos escolhe. Aqui a gente não tem mais rio, a realidade é essa. Se existir rio São Francisco é das represas, das barragens, pra lá. Aqui na frente de nossa aldeia ainda é um dos pontos mais largos que ele tem. Ainda assim, se você andar, chega em Alagoas caminhando.”

Transposição - População ribeirinha e comunidade científica apontam os mesmos fatores de degradação como causas do enfraquecimento da bacia. Em ambos os casos, o projeto de transposição das águas também aparece como um agravante. Alice vê incoerência nas afirmações de que o volume de água retirado do rio é insignificante: “Eles dizem que vão tirar o mínimo de água, mas já tem esse problema com tanta retirada de água pelas empresas pelo agronegócio. Nós, que vivemos na beira do rio, muitas vezes precisamos de carro-pipa.”

“O São Francisco não tem a mínima condição de fornecer os volumes que estão querendo tirar dele para abastecer 12 milhões de pessoas no nordeste que estão sedentos e, ainda por cima, irrigar 260 mil hectares, como diz o projeto da transposição. Isso fisicamente é impossível, porque o São Francisco é um rio de múltiplos usos”, explica João Suassuna, engenheiro agrônomo e pesquisador. Segundo ele, o rio já irriga 360 mil hectares ao longo de sua bacia, e produz 95% da energia consumida na região Nordeste. Somar a isso a demanda da transposição seria demais.

Roberto Malvezzi destaca que a degradação da bacia é um processo que vem ocorrendo desde o século 19, quando as margens eram desmatadas para alimentar os barcos a vapor, e o que se vê hoje é o resultado desse processo somado à chegada do agronegócio, das barragens, e dos dejetos urbanos e industriais. As agressões revelam um quadro de injustiça social: “A demanda contínua da água acaba sendo um privilégio das grandes empresas que podem captar muito dessa água e pagam muito pouco por ela. E essa água evidentemente faz falta para populações para as quais você teria que fazer adutoras, captação de água inclusive para abastecimento urbano ao longo do Vale do Rio São Francisco, o que caracteriza uma injustiça social e ambiental.”

A escassez gera conflitos. De acordo com a CPT, em seu relatório “Conflitos no Campo Brasil 2013”, houve um aumento de 32% no número de casos envolvendo disputas por água no país. Ao longo do São Francisco eles se manifestam de muitas formas. Alice conta que, em sua região, eventualmente alguma empresa tenta cercar as margens do rio, mas é impedida pela Marinha. “Tem as captações das grandes empresas, e ali você não pode circular, porque quem comanda é o agronegócio”, diz.
 

Moratória - Diante da situação, agravada pela estiagem dos últimos anos, a Articulação Popular São Franscisco Vivo protocolou nos escritórios do Ministério Público ao longo da bacia um pedido de Moratória do Rio São Francisco. “A moratória pede que sejam revistas as outorgas de uso da água, e que sejam impedidas novas outorgas”, diz Érica Daiane Costa, articuladora regional que acompanha o processo na região do submédio São Francisco.

“A articulação vem nesse processo de denunciar a situação do rio, a degradação de águas, se baseando também em outros movimentos sociais que há mais de 20 anos vem trazendo à tona toda essa realidade. Todos que dependem direta e indiretamente do São Francisco vêm fazendo esse debate a partir de algumas linhas, principalmente essa questão dos grandes projetos, que é a coisa que mais contribui com a degradação do São Francisco”, relata a articuladora. “Com o agravamento da situação, a gente pensou na moratória como uma medida para mexer mais nessa linha jurídica. Por isso ela foi protocolada em todos os ministérios públicos federais da bacia, em uma tentativa de dar uma visibilidade maior. É um momento de desespero, de recorrer ao que ainda não tinha sido tentado.”

Para a Articulação, é preciso repensar o uso da água. Não dá para falar em transposição, ou em novos usos da água e do rio, sem realizar a revitalização da bacia. Érica lembra que “em 2007 o governo lançou um projeto de revitalização do rio com recursos do PAC1, e depois do PAC2, e uma das coisas principais desse projeto, além de recuperação das margens, replantio de matas, é a questão do saneamento básico. Infelizmente isso não vem sendo cumprido.”

Filosofia predatória - Enquanto isso, fala-se na construção de uma hidrovia, e no uso de águas da Bacia do Rio Tocantins para garantir a viabilidade do projeto de transposição em curso. “É uma filosofia predadora, no sentido de que você destrói os mananciais que estão próximos, e depois vai buscar água mais longe, como se lá não fosse haver depredação e como se o Tocantins também não fosse um rio do cerrado. Aos poucos, você vai comprometê-lo também”, analisa Roberto Malvezzi.

Alice Pescadora não se dá por vencida. Ela acredita na ação comunitária, mas reivindica o apoio dos órgãos de fiscalização: “Eu tenho esperança que um dia as pessoas se conscientizem. Quem trabalha mais nessa questão da preservação são os pequenos pescadores, pequenos agricultores, que plantam sua mandioca, seu feijão pra comer. A gente é que vai, sai atrás de mudas para o replantio de matas ciliares, e enquanto a gente tem todo o sacrifício, aí vem outro fulano que tem terra, que desmata e joga os barrancos na beira do rio. É uma coisa que merece uma fiscalização grande por parte das pessoas do poder. A gente que é pequeno, sozinho, não pode. Se chegar e dizer que não pode fazer, é arriscado até querer nosso pescoço.”

Texto: Ronaldo Eli - ASACom (Com colaboração de Daniela Bento (Comunicadora popular da ASA) e Érica Costa (Jornalista do Irpaa)

Foto: Daniela Bento

Disponível no site da Asa


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