Conferência em Brasília define prioridades para a política pública de Assistência Técnica e Extensão Rural no Brasil

A Conferência Temática de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), etapa preparatória para a 3ª Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (3ª CNDRSS), aconteceu de segunda a quarta-feira (3/12), na sede da Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (CONTAG), em Brasília. O evento reuniu mais de 300 participantes, com representações da sociedade civil, governos, movimentos sociais, agricultoras/es familiares e representantes de povos e comunidades tradicionais. 

No primeiro dia foi realizada uma mesa com o tema “Extensão Rural fortalecendo o Bem-Viver: por uma agenda estratégica de ATER para Territórios Sustentáveis, Alimentos Saudáveis e Agroecologia”; as discussões tiveram como foco a ATER como política pública. O momento contou com apresentação do “Relatório de Avaliação Executiva da PNATER”, apresentado por Marcell Machado, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA); também foi abordado o tema “O Estado da Arte da ATER no Brasil”, apresentado por Eli Weiss, do Banco Mundial. A mesa proporcionou ainda discussões sobre o cenário atual da ATER e como qualificar essa política de forma que seja efetiva no campo, com apontamentos levantados pelo presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), José Nunes.

“Essa conferência tem um papel fundamental, que é da gente organizar uma estrutura de governança da ATER no Brasil. Desde a recriação do MDA, nós vivenciamos uma certa polaridade entre Dater, MDA e Anater; e isso não é bom para a ATER pública, não é bom para a sociedade brasileira e eu acho que a gente está chegando ao momento de ‘colocar o ponto nos ís’, no ponto das governanças, discutir papéis, quem é que executa, quem é que avalia, quem são esses agentes de ATER, quais são os papéis de cada um, como é que nós vamos fazer essa construção partilhada entre agentes governamentais e não governamentais”, destacou Nunes. 

O presidente da ABA destacou ainda que a sociedade civil acumulou muitas experiências em abordagens metodológicas participativas de ATER com base nos princípios da agroecologia. Nesse sentido, Nunes enfatizou que é preciso refletir “Como trazer a partir da formação continuada, da troca de experiência, do intercâmbio, essas organizações para próximo desse debate. Então, acho que as propostas vão nesse caminho”. 

Em relação à importância de garantir continuidade nas ações da ATER, Nunes foi enfático: “Com esse orçamento que está aí, não tem como fazer, porque nós vamos sempre viver de chamadas com pouco recurso, encomenda alta, demanda burocratizada. Nenhuma ATER que contribua para a transição agroecológica vai ser feita com chamada de 24 meses com dificuldade orçamentária, precisa ser uma coisa estruturada que garanta continuidade desses processos educativos em cada um dos territórios”.

A programação contou com trabalho de grupos em cinco eixos: 1- Papel da ATER no fortalecimento da Agricultura Familiar frente às mudanças climáticas; 2- ATER para transição agroecológica dos Sistemas Alimentares e fortalecimento da Agricultura Familiar 3- ATER na interface com as políticas de reforma agrária e promoção e proteção do direito à terra, à água e ao território; 4- ATER para promoção da Cidadania e do Bem Viver; 5- Estado, participação popular e governança da Políticas Nacional de ATER para o desenvolvimento rural.

Clérison Belém, coordenador institucional do Irpaa, integrante da Rede ATER Nordeste de Agroecologia e representante da sociedade civil no CONDRAF, contextualiza e destaca o intuito dessa construção ao longo da Conferência: “Bebe da fonte das duas conferências de ATER que foram realizadas e também do Seminário Nacional de ATER que ocorreu em 2023. Então, a gente quer sair daqui com boas propostas, com delegados eleitos para levar essas propostas para a Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural que vai acontecer no mês de março em Brasília reunindo o Brasil todo para construir o rural, o Bem Viver no campo”.  

O objetivo de todas essas discussões em espaços coletivos e de participação social é fazer com que “essas propostas se tornem projetos, programas e políticas públicas e alcancem os agricultores familiares, as comunidades que mais precisam. Então essa é uma atividade que faz parte da democracia, participação popular, construção coletiva”, reforça Clérison.

O Sistema Unificado de Assistência Técnica e Extensão Rural (SUATER), que visa institucionalizar a ATER no Brasil como uma política de Estado, inspirada no modelo do SUS, foi um dos destaques do evento. A proposta busca garantir financiamento permanente para que a ATER seja continuada, além de governança unificada, dados integrados e participação social para fortalecer a agricultura familiar, os territórios sustentáveis, a produção de alimentos saudáveis e a agroecologia. 

Nesse sentido, Fernanda Machiaveli, secretária executiva do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), destacou a importância e os impactos positivos que essa Conferência deixará para a história da ATER. “A construção do SUATER é um grande legado e cada um que está aqui vai ter feito parte dessa história. Então, acho que essa é um pouco da sensação de responsabilidade, vamos juntos construir esse sistema unificado e fazer a transformação do nosso campo, garantir a agroecologia, produção de alimentos saudáveis e adaptação às mudanças climáticas”, concluiu Fernanda. 

Na Conferência foram consolidadas 30 propostas prioritárias para a ATER no Brasil, que vão orientar a formulação e o fortalecimento das políticas públicas de ATER. Foram definidos 30 delegados/as para a 3ª CNDRSS, sendo nove representações do poder público e 21 da sociedade civil. A etapa nacional, prevista para 2026, deve construir propostas e diretrizes para políticas públicas de desenvolvimento rural no Brasil. 

“Para a agricultura familiar, uma ATER sem Senar” 

A Conferência foi um espaço estratégico para a manifestação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF) sobre o acordo de cooperação entre o MDA e o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR), entidade vinculada à Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), ligada ao setor patronal rural. O CONDRAF  mostrou, mais uma vez, a insatisfação da sociedade civil em relação a essa parceria que trata a agricultura familiar como um “agronegocinho”. Durante o momento, os/as participantes demarcaram essa manifestação com o grito de ordem: “Para a agricultura familiar, uma ATER sem Senar”.

Conselheiros/as da sociedade civil que integram o CONDRAF escreveram uma carta aberta à sociedade sobre o acordo de parceria entre MDA e SENAR. O documento enfatiza que “o SENAR tende a ser essencialmente tecnicista, produtivista, fragmentada e desprovida de uma abordagem sistêmica. Prática que não incorpora o conhecimento tradicional dos/as agricultores/as em suas práticas, algo fundamental na agroecologia, onde a experimentação e adaptação a cada realidade local são essenciais, bem como não considera as relações sociais gênero, geração, raça e etnia”.  

A Carta destaca ainda que somente com “investimentos nas organizações de ATER comprometidas e presentes nos territórios, atuando na articulação das políticas públicas será possível avançar no combate à fome, na produção de alimentos saudáveis e na adaptação e promoção de sistemas resilientes para enfrentamento às mudanças climáticas”. Confira a carta aberta na íntegra.

Aniérica Almeida, coordenadora técnico-pedagógica do Centro Sabiá, integrante da Rede ATER NE de Agroecologia e representante da sociedade civil no CONDRAF avalia: “Esse acordo não vem para fortalecer esse processo de construção histórico que a gente vem tendo de pautar a agroecologia dentro das políticas públicas para agricultura familiar, porque a gente bem sabe que o SENAR nunca fez agroecologia, o Senar dentro da sua história e da sua trajetória sempre teve uma perspectiva de fortalecer o agronegócio e a gente que está nas comunidades, a gente que está nos territórios, a gente vê o resultado e o impacto dessa ação do SENAR que trata a agricultura familiar e busca formar uma perspectiva do agronegocinho”.

É preciso propor uma ATER agroecológica e contextualizada com a realidade de cada território, com base numa construção coletiva e abordagens metodológicas inovadoras, como o método Lume de análise econômico-ecológica de agroecossistemas, empregado pela Rede ATER Nordeste e pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). Como reforça Aniérica. “A ATER não pode ser para difundir o conhecimento, mas sim construir o conhecimento junto com as famílias, porque é a partir da construção e do diálogo, que as famílias se tornam cada vez mais empoderadas”. 

Ainda no evento, Fernanda Machiaveli reconheceu o erro no processo de parceria entre MDA e SENAR, ao afirmar: “Qual foi a grande falha desse processo que o ministro Paulo Teixeira reconhece, que nós reconhecemos? Não ter feito o diálogo com o nosso comitê de ATER, porque isso precisava ter sido dialogado com o CONDRAF que é a instituição participativa de controle social do Ministério do Desenvolvimento Agrário e precisava ter sido envolvido, dialogado, reconhecido nesse processo. Então, essa falha, no processo de construção, eu reconheço em nome do nosso Ministério, me comprometo que isso nunca mais vai acontecer! O CONDRAF é a nossa instituição, a gente só vai ter políticas públicas bem alinhadas, quando fizermos um diálogo”. 

Ao reconhecer a falha na falta de diálogo, Fernanda demonstra uma compreensão das complexidades que envolvem a construção de políticas públicas e a importância da participação de todos os atores envolvidos, como o CONDRAF. Ela também destacou a intenção de aprimorar a comunicação e o entendimento entre as partes, o que pode resultar em políticas mais eficazes, fator essencial para o sucesso de iniciativas governamentais voltadas à ATER.

“O Norte e o Nordeste têm, sim, organizações fortes, experientes e comprometidas”

Durante essa Conferência surgiu o debate sobre o uso excessivo dos Termos de Execução Descentralizada (TED’s), especialmente no programa Mais Gestão. O TED permite a execução de programas e ações de interesse público entre órgãos federais, otimizando o uso de recursos e a agilidade na gestão.

Em meio às críticas das organizações, um representante do MDA afirmou que “o Norte e o Nordeste não têm organização da sociedade civil capaz de executar a ATER do Mais Gestão”. Essa declaração gerou indignação e foi vista como desrespeito às entidades que ajudaram a construir e manter vivo o Mais Gestão desde o governo Dilma, atravessando o período de Temer e Bolsonaro.

Em resposta, Célia Firmo, coordenadora geral do Movimento de Organização Comunitária (MOC), pediu retratação pública e reafirmou: “O Norte e o Nordeste têm, sim, organizações fortes, experientes e comprometidas”. São décadas de trabalho nos territórios, como o MOC, com mais de 50 anos no território do Sisal na Bahia e que, ainda assim, segue fora de discussões estratégicas do Projeto Dom Helder, por exemplo.

A sociedade civil é quem executa, propõe, transforma e sustenta a política pública. E as regiões Norte e Nordeste precisam ser tratadas com respeito, reconhecimento e espaço real nas decisões.  

 

Lorena Simas

Coletivo de comunicação da Rede ATER Nordeste de Agroecologia

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