Guardiãs e guardiões de sementes, Agroecologia e o futuro do cuidado com a biodiversidade: temas são destaques em Feira durante o CBA 2025

A troca voluntária é um dos gestos solidários mais bonitos. E, quando esse ato está associado à partilha de saberes e de práticas relacionadas às ancestralidades, esses temas se tornam ainda mais ricos e potentes. Por isso, quem ainda não vivenciou uma “Feira da Agrobiodiversidade” precisa ter essa experiência. Ainda mais porque, onde quer que aconteça, é sempre um momento de “encher os olhos” e de renovar os ânimos da crença em um futuro, de fato, sustentável, saudável e biodiverso.

Não poderia ser diferente durante a feira realizada durante o 13º Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA), que aconteceu em Juazeiro-BA, entre os dias 15 e 18 de outubro.

No espaço de uma Feira da Agrobiodiversidade, agricultores e agricultoras familiares, guardiões e guardiãs de sementes crioulas – ou sementes da paixão – repassam para outras pessoas um pouco daquilo que sabem, daquilo que guardaram e continuam guardando. São eventos que ressaltam a força da ancestralidade – pois essa prática é herdada de gerações passadas, garante, no presente a independência da agricultura familiar e semeia, para o futuro, a diversidade da produção vegetal e animal nos diferentes Territórios.

As sementes crioulas, por exemplo, podem “reproduzir” – diferentemente daquelas que são comercializadas com o rótulo de “alta produtividade” e “maior resistência” –, mas que estão associadas ao sentido oposto da agroecologia: fortalecem a indústria de sementes e da transgenia, centralizam a renda em setores do agronegócio, entre outros impactos negativos.

Só que, felizmente, do lado das sementes tradicionais têm outras diversas características positivas que fazem, cada vez mais, a tradição de guardiões/ãs ganhar adeptos/as. Entre elas, são destaques a riqueza de variedades, a resistência e adaptação natural ao clima da região, o sabor mais acentuado e a partilha de conhecimentos. Aqui, um parênteses para destacar o sabor: quem nunca comeu uma abóbora ou jerimum cultivados a partir de sementes crioulas está perdendo muito. Se o sabor for comparado com os produtos das “fazendas do agro”, das sementes ditas “melhores”, a pessoa pode até, facilmente, ficar em dúvida se aquilo é mesmo o que dizem ser, já que o sabor é, como afirmam popularmente, “aguado”, sem gosto.

Ser um guardião ou guardiã de sementes é também zelar pelos saberes dos antepassados. Não é apenas o cuidar da semente; junto a isso existem formas de cuidados, dicas de como plantar e tantas outras informações acumuladas e que vão sendo partilhadas em cada momento de encontro. É nesse sentido que o agricultor experimentador Tone Silva, da comunidade autorreconhecida quilombola Berro Grosso, de Poço Redondo-SE, enfatiza a importância da Feira da Agrobiodiversidade, ainda mais a realizada em um evento da magnitude do CBA:

“Ser guardião não é só guardar algo, é você guardar e resguardar. Porque você sendo guardião hoje, você incentiva uma criança de hoje a querer ser um guardião no futuro. (…) Esse CBA aqui é uma junção de Povos e de cultura, às vezes a cultura do milho de um, ou da guardiã de sementes, tem anos que você nunca ouviu falar; chega aqui ‘o cara’ tá há mais de 20 anos cultivando a semente e pode ser seu vizinho e você não descobre. Aí, quando se junta nesse espaço todo mundo acaba descobrindo”. 

Nesse sentido, Tone destaca que a feira é ainda uma oportunidade para conhecer e resgatar sementes que estão ficando raras de encontrar. “Aqui acabei descobrindo que o povo tá procurando muito o ‘milho de pipoca dente de alho’, que todo mundo tá sentindo falta dessa espécie que, praticamente, tá em extinção. Eu tenho, mas não consegui trazer”.

Descendente de povos indígenas por parte de mãe e de negros escravizados por parte de pai, Tone herdou da família a prática de cuidar das sementes crioulas. Essa tradição foi potencializada com o acesso à política pública do Programa Cisternas, que garantiu  água de produção por meio de uma  cisterna calçadão (52 mil litros). A partir de então, a família ampliou a produção agrícola, principalmente com o cultivo de hortaliças, e passou a se dedicar também à conservação da Caatinga em Pé. A preservação de espécies desse bioma também tem sido uma das principais atividades do agricultor.

No espaço da Feira da Agrobiodiversidade no CBA 2025, a agricultora Maria Santa da Silva partilhou o trabalho desenvolvido em Limoeiro do Norte-CE. Dona Santa, como prefere ser chamada, destacou as ações voltadas à avicultura caipira. Por lá, já acontece tradicionalmente, há 8 anos, uma feira da agricultura familiar que tem sido um espaço importante, como ela diz: “para troca de saberes e sabores” e que “são produtos orgânicos de qualidade, para o consumo de todas as famílias que estão ao nosso redor e que procuram nossos produtos (…) e a gente traz essa experiência aqui (para o CBA) também para dizer que nós estamos lá no Ceará fazendo valer algumas das nossas ações, que a gente tem muitas conquistas. Hoje conseguimos vender pro PAA e para o PNAE”, celebra a agricultora.

Sobre a integração entre expositores/as, dona Santa ressalta que se sentiu acolhida: “Visitamos algumas outras experiências, é muito acolhedor o espaço, a troca entre os que estão aqui eu acho muito prazerosa. Trouxemos amostras dos nossos produtos para degustação, para a gente falar e comprovar daquilo que a gente é, daquilo que a gente faz, do que somos”, destacou animada. 

A região do agreste meridional de Pernambuco esteve representada pelo estudante de Agroecologia na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Micael Vinícius, de Garanhuns-PE. Entre os itens expostos e utilizados no momento da troca de sementes, havia diferentes tipos de feijão, por exemplo, o que demonstrava a potência desse trabalho de cuidado com a diversidade tradicional. 

“(…) Muito valioso (o evento), principalmente a troca de sementes, que a gente vem nessa constante de tentar resgatar essas variedades tradicionais. Fazemos parte de uma rede de sementes crioulas e a gente trabalha com resgate de variedades. Trazendo isso para o CBA, inclusive conhecer outras sementes, para a gente é muito gratificante porque tem sementes de outras regiões que a gente perdeu na nossa. E aí, vieram pessoas conversar com a gente sobre variedades do Ceará que eles perderam e a gente tinha. Então, é um intercâmbio que fortalece, cada vez mais, nesse processo de resgate, conservação e de proteção das variedades tradicionais”.

Em cada troca de conhecimentos, nas visitas ao que estava sendo exposto naquele espaço e no momento de partilha entre agricultores/as, o que se observava não era apenas o ato de trocar um item; representava algo maior – o compromisso com a continuidade dessa tradição que é um dos caminhos para alcançar aquilo que o CBA se propôs a discutir e evidenciar em 2025: Agroecologia, as práticas e saberes de Convivência com os Territórios brasileiros e a importância do engajamento da academia, da sociedade civil organizada e dos movimentos sociais populares em relação aos temas da Justiça Climática. E mais: como foi muito reverberado ao longo do Congresso, o espaço da Feira da Agrobiodiversidade ilustra bem a frase “O futuro é ancestral”!

Sobre o CBA

O Congresso foi organizado pela Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa), Serviço de Assessoria a Organizações Populares (Sasop), Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Universidade do Estado da Bahia (Uneb de Juazeiro), Movimento dos Pequenos e Pequenas Agricultoras (MPA), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sertão Pernambucano (IFSertãoPE). Contou também com a contribuição de representantes de diversas organizações, redes e articulações da sociedade civil, instituições de ensino, movimentos sociais populares, poder público e comunidades tradicionais.

Texto e fotos: Eixo Educação e Comunicação do Irpaa

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