Sabe aquela narrativa de que a Caatinga não tem vida, que o Semiárido é tudo seco, e por aí vai, com todos os estereótipos que muitos já conhecem? Pois é, com base nesse discurso mentiroso, muitas pessoas e empreendimentos tentam se aproveitar para chegar em comunidades rurais, degradar ou se apropriar de todos os bens que elas têm, destruindo a biodiversidade e os modos de vida tradicionais. Mas, essa realidade, felizmente, também é confrontada com resistência e organização social. E uma das estratégias fundamentais para a defesa das comunidades e territórios tradicionais é a construção de um Protocolo de Consulta Prévia, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Esse documento, do qual o Brasil é signatário, resguarda, aos povos e comunidades tradicionais, por exemplo, o direito de serem ouvidos; mais do que isso, o desejo e a decisão coletiva devem prevalecer.
Mas, não é isso que vem acontecendo. Há falta de informação e transparência de diversos projetos que afetam as comunidades tradicionais, que são as últimas a saberem da chegada dos empreendimentos e as mais impactadas negativamente por eles.
Além dos projetos já existentes, como: mineração, linhas de transmissão, energia eólica e fotovoltaica (solar) no Território Sertão do São Francisco, outro exemplo do que se apresenta no cenário é o chamado Canal do Sertão Baiano, que prevê inicialmente a construção de pouco mais de 10km de canal, do Rio São Francisco até a região do Salitre, em Juazeiro-BA. O projeto, conforme noticiado no final de 2024 pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), já está em andamento, inclusive com garantia de recursos no orçamento do Governo Federal. O Projeto ainda é desconhecido em detalhes por inúmeras comunidades que, certamente, podem ser afetadas de alguma forma.
Nesse caso específico, uma questão que pode ser apontada por quem não tem conhecimento do assunto, é: “Mas o projeto é para garantia de água, uma luta das próprias comunidades, não pode ter impedimentos”. Então, aí está a chave para entendermos a importância da Consulta e Consentimento Prévia, Livre e Informada. É só buscar respostas para algumas perguntas: Quais áreas de uma comunidade, ou território tradicional, serão afetadas durante a construção? Essas áreas vão comprometer a produção das famílias, locais históricos das comunidades? Elas também serão beneficiadas com essa água, ou, terão que ver esse bem que é um direito, passando na frente dos olhos delas, e continuar esperando a vez? Qual a melhor forma de fazer algo acontecer com o mínimo de impacto para quem vive nesses lugares? São muitas as questões e elas só podem, e devem, ser respondidas por quem já vive nessas comunidades, inclusive com histórico ancestral de gerações povoando o lugar.
O Protocolo Autônomo serve ainda para demais processos que envolvem essas comunidades e que provocam alterações na dinâmica sociocultural, como o fechamento de escolas. Outros aspectos fundamentais é que essa escuta se dá em várias etapas, que vão desde reunião para apresentar o que se pretende, com a explicação de todos os detalhes, até a manifestação do que a comunidade decidiu, inclusive no tempo dela, sem pressões. Além disso, a consulta não pode ser feita pelos empreendimentos, e sim, pelos órgãos públicos envolvidos, respeitando os prazos estabelecidos no Protocolo Autônomo da comunidade.
Diante das diversas ameaças que as comunidades vêm sofrendo, uma das estratégias de defesa é a elaboração desse documento. Por isso, desde novembro de 2022 que o Comitê de Associações Comunitárias Agropecuárias de Massaroca (CAAM), em Juazeiro-BA, está em articulação para construir o “Protocolo Autônomo de Consulta e Consentimento” de 21 Comunidades Tradicionais Fundo de Pasto. Elas fazem parte de algumas das 15 associações que integram o CAAM.
Já na fase de conclusão, estão acontecendo reuniões para devolutiva nas comunidades, com o objetivo de socializar como está o andamento da elaboração do documento e fazer ajustes, de acordo com o apontamento dos/as moradores/as. Inclusive, entre as informações levantadas e conferidas nestes momentos, estão: detalhes da história, com marcos importantes, fauna, flora, gerações e pessoas mais idosas de cada lugar. Uma dessas atividades, aconteceu no último domingo (1), na comunidade Tradicional Fundo de Pasto Curral Novo, com a participação de integrantes das comunidades vizinhas: Jacaré, Lagoa do Tanquinho, Lotero e Queimada do Alto.
“Estamos apresentando todo o material construído, fazendo a devolutiva pra essas comunidades. A gente sabe da importância que é passar em cada comunidade dessa apresentando o que foi construído. Isso é construído junto com elas; mas, agora, voltando a cada comunidade, mostrando o que foi construído junto e acrescentando algumas informações, que a gente faz esse apanhado específico de cada comunidade”
Enfatiza a presidenta do CAAM, Ana Lúcia Silva.
O presidente da Associação de Curral Novo e Jacaré, Raimundo Archanjo de Lima, reforça o sentimento nessa construção do documento:
“Pra nós aqui, que somos uma comunidade bem organizada, [tradicional] de Fundo de Pasto, a gente se sente mais seguro com esse protocolo. A gente tem um documento a mais pra gente barrar essas coisas, dos empresários”
Nesse sentido, a agricultora Clarice Duarte também destaca que as comunidades já vivem bem e em paz:
“[O protocolo] É importante pra nós, porque é segurança pra nossa comunidade! Porque [contribui na defesa] a maioria das coisas que acontecem, dos de fora querer entrar na nossa comunidade [empreendimentos, grileiros, etc.]. A gente mora aqui há muitos anos e não quer ninguém que venha atrapalhar a nossa vida, a gente vive uma vida boa, sossegado, cuidando da comunidade”.
A elaboração desses protocolos referentes às 21 comunidades, em publicação única, articulada e realizada pelo CAAM, está sendo feita com o apoio do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa), com perspectiva de lançamento em outubro. “A gente vem vivendo uma maratona muito boa e estamos chegando na fase final; e, em breve, vai estar vivendo o melhor momento, que vai ser o lançamento do protocolo, desse documento que vai dar essa autonomia a essas comunidades, de serem ouvidas, de falar a nosso respeito”, ressalta, com muita expectativa, Ana Lúcia.
Texto e fotos: Eixo Educação e Comunicação do Irpaa