Que Educação Contextualizada fazemos e queremos? Qual é o papel do Estado nesse processo? E de que forma é possível seguir a caminhada de luta para a garantia de uma educação que seja, de fato, emancipadora e que leve em consideração a realidade de cada lugar? Foram essas questões que nortearam as discussões do “Seminário Estadual de Educação Contextualizada para Convivência com o Semiárido”, realizado na última quinta e sexta-feira (16), no Centro de Formação Dom José Rodrigues (CFDJR), a roça do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa), em Juazeiro-BA.
Além dos/as participantes da formação modular com as Escolas Famílias Agrícolas (EFA’s), esse evento contou com a presença de professores/as de escolas municipais do Território Sertão do São Francisco e Piemonte Norte do Itapicuru, além de integrantes/representantes: de Secretarias de Educação de Curaçá, Juazeiro e Sento Sé; da Rede de Educação do Semiárido Brasileiro (Resab), do Departamento de Ciências Humanas (DCH 3 – Juazeiro) da Universidade do Estado da Bahia (Uneb); Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf); coordenação executiva do Fórum Estadual de Educação do Campo (FEEC) e estudantes da República do Irpaa.
Toda essa diversidade de público enriqueceu a troca de saberes e as discussões ao longo da programação, que teve: Trilha Pedagógica da Convivência com o Semiárido, partilhas de experiências das Escolas e mesas com discussões relacionadas ao tema do evento.
As pessoas presentes no Seminário pontuaram a importância dos temas abordados na Trilha Pedagógica, entre eles: cisternas, filtro caseiro, energia solar, produção de biogás, caprinos, quintal produtivo, banco de sementes crioulas, certificação orgânica participativa, barreiro trincheira, Recaatingamento e saneamento rural com reúso de água. Para além das tecnologias e práticas, todos os debates evidenciaram, principalmente, questões políticas e sociais, direitos, potencialidades e desafios dos Povos do Semiárido. Nesse sentido, em uma das avaliações do momento, um dos participantes frisou:
“Aqui não se fala só de tecnologia, fala da vida social!”.
Na sequência, os/as participantes tiveram um momento para socializar os resultados da formação modular (integrantes das EFA’s) e das atividades vivenciadas até então (integrantes das escolas municipais). Essa partilha evidenciou uma diversidade de ações, que foram potencializadas a partir das discussões e conhecimentos abordados. Por exemplo, foram citados/as: o aumento da utilização dos laboratórios vivos na contextualização do ensino; trabalho junto às famílias sobre produções apropriadas ao clima, mais debates relacionados às mudanças climáticas e intervenções nas comunidades. Além disso, algumas EFA’s pontuaram a revitalização de programas de rádio, produção de mais conteúdos audiovisuais e melhorias nos registros fotográficos das atividades. Outro exemplo vem da EFA Jaboticaba, de Quixabeira-BA, que está trabalhando para reativar uma rádio.

Diante de tantos resultados interessantes, o momento de socialização das experiências também rendeu o apontamento de questões essenciais nesse trabalho de multiplicação dos conhecimentos. O colaborador do Irpaa, André Rocha, destacou a importância de não perder de vista o elemento clima na contextualização do ensino. Ele enfatizou ainda que atualmente os cursos precisam ter menos implementação de modelos de produção e sim pensar mais estratégias de gestão, com currículo voltado à sustentabilidade ambiental. Outro aspecto evidenciado, e que foi apontado pelas intervenções dos/as participantes, é a necessidade de não perder de vista os ensinamentos de Paulo Freire, para a construção de uma Educação que forma sujeitos críticos.
Inclusive, as inspirações e motivações freirianas também foram enfatizadas na programação do segundo dia, durante as falas dos/as convidados/as. A primeira mesa abordou o tema “O papel do Estado na Educação Contextualizada para Convivência com Semiárido”, com a mediação do presidente do Irpaa, José Moacir dos Santos. Entre outras coisas, ele lembrou de todo o trabalho realizado com educadores/as de Curaçá, ressaltou a importância da dimensão municipal nessas discussões e que é fundamental a criação nos municípios de uma política de educação contextualizada:
“Política o gestor pode até enfraquecer, mas não destrói. A qualquer momento, quando as forças políticas, o contexto favorece, já tá pronta lá, você só tem que retomar a discussão”.
José Moacir também destacou, como um dos resultados da contextualização do ensino, o pertencimento e autoestima da juventude, de se identificar com orgulho por ser do Semiárido, Caatingueiro/a. “Isso foi trabalho das escolas e também de várias professoras que participaram das formações”.
A vice-prefeita e secretária de educação de Curaçá-BA, Maria da Paz Silva (Paizinha), afirmou que as escolas precisam abordar temas diversos que fazem parte do contexto local, como associativismo, cooperativismo e o pensar coletivo; desenvolvendo um trabalho que contribua para a melhoria da qualidade de vida das comunidades. “A gente precisa absorver isso, a gente não pode viver isolado, a gente precisa fazer parte de um todo. Isso significa também que a gente precisa melhorar a qualidade de vida onde estamos, esse é o grande desafio”.
Paizinha destacou também que em Curaçá, entre 1997 e 2003, houve a construção de uma proposta político-pedagógica, que regrediu em alguns momentos e ficou engavetada. Mas que agora está pretendendo retomar. Para isso, a secretária lembrou a importância de seguir em parceria.
Edinalva dos Santos, popular Biquinha, que representou a secretária de educação de Juazeiro, disse que a proposta de contextualização do ensino no município “sempre andou engatinhando”. Entretanto, atualmente, entre os objetivos da secretaria está a ideia de retomar a atuação da Escola Municipal Rural de Massaroca (Erum) como referência para as demais escolas dos distritos, porque é “uma experiência extremamente contextualizada”. Entre outros assuntos, Biquinha enfatizou que a secretaria já está em diálogo com a Uneb, Univasf e Irpaa para potencializar formações e ações relacionadas à contextualização do ensino.
“Se a gente não tiver uma mudança de postura e de currículo, a gente não vai muito longe não”, porque “(…) quem contribui com a mudança de postura é a escola mesmo e se a escola tiver pessoas despreparadas para fazer a discussão e ajudar na discussão, a gente não vai pra lugar nenhum”.
Ao concluir as discussões dessa mesa, o presidente do Irpaa destacou, por exemplo, que nunca conseguiu sentar na mesa e discutir com a organização social da educação, o movimento sindical dos professores e professoras; apontando como algo que precisa avançar. Além disso, ele questionou: “Como aceitam no dia da formação um coach, que leva o dinheiro que poderia ser investido o ano todo em formação?”.
Entre as reflexões do momento de interação com os/as participantes, foi destaque a fala do professor Manoel Messias Conceição, da Efa de Valente-BA. Ele afirmou que é preciso “botar Paulo Freire na centralidade das discussões, acredito que recupera muito esse processo da participação coletiva das comunidades rurais; das periferias, que é outro campo muito forte que está aí abandonado, praticamente. A gente tem um segmento muito do campo, do êxodo, que vem para essas periferias para ser massa de manobra, trabalho sub-humano muitas vezes”.
O caminho é a coletividade
“Que Educação Contextualizada para Convivência com Semiárido queremos e fazemos?”. Essa foi a questão em pauta na segunda mesa do Seminário, mediada pela integrante da coordenação executiva do FEEC e também diretora da EFA de Quixabeira, Iracema dos Santos.
Antes mesmo das discussões, Iracema evidenciou alguns elementos pontuados ainda durante a primeira mesa, sobre o papel do Estado e o problema do fechamento das escolas do campo, que requer mais atenção e atuação das redes e fóruns.
Por exemplo, ela afirmou que o território do SISAL é o que mais fecha escolas na Bahia, mas lá tem muitas organizações da sociedade civil e movimentos que podem intensificar a luta. “A minha proposição é de nos fortalecermos como rede, para construção de políticas públicas (…) precisamos de uma articulação nossa, entre nós. A gente precisa fazer isso juntos”.
Ao reforçar a importância de pautar o Estado, Iracema complementou:
“Enquanto Fórum (FEEC), temos um diagnóstico (fechamento das escolas do campo) e estamos devolvendo nos territórios; e foi pautado junto à Secretaria de Educação do Estado, para pensar qual a Política de Educação do Estado da Bahia. Entendendo que o Estado é também responsável pelos municípios (…) A política pública é responsabilidade do Estado. Então, trazer presente essa questão da contra hegemonia. Para quem é que a educação do campo, a educação contextualizada e a educação que as Efas oferecem interessa? Se quem tá mandando aí é a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), é o capital; se a educação virou mercadoria?”.
Em síntese, as discussões apontaram a importância de valorizar e potencializar as parcerias. Muito do que foi conquistado até o momento e todos os desafios que se apresentam exigem atuação em rede, com a força da coletividade.
“É desafiador, porque precisamos fazer várias intervenções. A gente precisa ter muito cuidado (…) qual é o nosso papel enquanto organização social e qual o papel do Estado; e o nosso papel é de fazer o processo de descolonização. E aí, não vai ser fazendo os acordos multilaterais, vai ser com a gente pensando a partir da nossa lógica (…) Quanto mais a gente se junta, mais se fortalece!”, defende o diretor da Refaisa, Crispim Ribeiro.
O representante da Aecofaba na mesa, Adevanildo Lopes, lembrou a parceria com a Uneb em um curso de Agroecologia e problematizou a ida, cada vez maior, da juventude para o Agronegócio. “Precisamos trabalhar mais a questão do jovem. Claro que não é segurar o jovem, mas também que ele não fique lá no agro”.
A professora da Uneb e também integrante da Resab, Luzineide Carvalho, lembrou dos avanços construídos coletivamente ao longo da trajetória, com discussões sobre esse Semiárido que é diverso e a luta pelos territórios. Mas, ela lembrou que ainda é necessário pautar mudanças no currículo, porque “é fragmentado; quando a gente vai falar de um trabalho, um projeto de Educação Contextualizada compreendem que ‘ah, é em geografia, em história, é em alguma disciplina…’; então, a gente luta por um currículo que olhe essa complexidade que move povos e também essa natureza dinâmica, que não é só climática, mas também é biogeográfica”.
Outro desafio enfatizado pela professora Luzineide é a falta de mais envolvimento das instituições de ensino, inclusive da Uneb.
“Muitas universidades não dialogam; por exemplo, a Uneb é multicampi, ela está em toda a Bahia, mas pouquíssimos campi e departamentos falam em Educação Contextualizada, mesmo estando na parte Semiárida da Bahia”.
Uma das intervenções da mediadora foi sobre a questão da juventude, levantada ao longo das falas. “A educação só ela não vai dar conta, nós precisamos de outras políticas públicas, de outras parcerias! O agronegócio está oferecendo aquilo que eles não têm, e eles precisam sobreviver, e tem que sobreviver; muitos vão, inclusive, por falta de alternativa. Então, precisamos ter presente de que sem terra, sem água, sem semente, sem financiamento, dificilmente nós vamos manter a juventude no campo”, afirmou Iracema.

Nesse mesmo sentido, a estudante de Pedagogia, integrante da República do Irpaa, Elisânia Pereira, Lili como prefere ser chamada, participou da discussão para lembrar da importância de sempre envolver as juventudes nos processos de tomada de decisão:
“Nada sobre nós, sem nós! Então, pra falar da juventude, ela tem que estar presente para falar o que a gente quer; como que a gente quer continuar no campo, de uma forma que a gente fique e goste”
Lili
Após as mesas, os/as participantes fizeram apontamentos necessários para os próximos passos, sobre o que precisa de um olhar mais dedicado de todos/as, como por exemplo: promover uma aproximação e diálogo com o movimento sindical de educadores/as; intensificar formações; maior articulação entre as instituições e movimentos; repassar conhecimentos às famílias; potencializar a divulgação das pautas relacionadas à Educação Contextualizada e do Campo; e reforçar sempre a importância da elaboração e utilização de materiais didáticos contextualizados.
O Seminário também foi a culminância da formação modular com as EFA’s, por isso aconteceu ainda, na parte final, um momento de avaliação e entrega de certificados. Desde junho de 2024 que os encontros começaram, englobando 5 oficinas territoriais na Bahia, agregando as EFA’s por proximidade; e 3 seminários temáticos, com a participação de todos/as, além de convidados/as. As avaliações dos/as participantes, de modo geral, apontaram que essa formação contribuiu consideravelmente para potencializar a atuação das EFA’s junto às pautas da Convivência com o Semiárido, sobretudo com a defesa da Caatinga e das comunidades frente às ameaças atuais.
“Foi muito enriquecedor. Veio a somar naquilo que a gente já faz. Vimos outras formas de trabalhar com os nossos alunos. Inclusive, em visitas que fiz às famílias mês passado, lá está implantando torres eólicas; aí, fui falar sobre os contras (impactos), eles falaram que o ‘pessoal que foi fazer não falou nada sobre isso, falou o valor em dinheiro, o quanto seria bom…’ (…) Coisa assim (alertas, pautar a defesa das comunidades, etc.), que nesses 4 encontros só vieram mesmo a somar, conhecimentos maravilhosos!”, destaca a professora e monitora da EFA de Boquira-BA, Silvia Almeida.
Essa fala da professora Silvia representa e evidencia os frutos das inúmeras formações de multiplicadores/as que o Irpaa realizou e realiza junto às comunidades, escolas, universidades e instituições parceiras; sempre com o objetivo de somar forças na luta por um Semiárido cada vez mais vivo e sem nenhum direito a menos.
A iniciativa é uma realização do Irpaa, em parceria com a Rede das Escolas Famílias Agrícolas Integradas do Semiárido (Refaisa) e da Associação das Escolas das Comunidades e Famílias Agrícolas da Bahia (Aecofaba); com o apoio da Cáritas alemã. Esse Seminário também contou com o apoio do projeto “Agenda 2030 no Semiárido Baiano”, que é realizado pelo MOC e Irpaa, com o apoio da Horizont3000 – organização não-governamental austríaca de cooperação para o desenvolvimento; e financiamento da Comissão Europeia, Sei So Frei Graz, DKA e Agência Austríaca de Desenvolvimento (ADA).
Texto e fotos: Eixo Educação e Comunicação do Irpaa