Seminário Estadual reafirma importância da defesa da Caatinga em pé: “Sem terra e território não há Recaatingamento”

Com foco na emergência climática, no combate à desertificação e na urgência de políticas públicas para conservação e recuperação da Caatinga – bioma exclusivamente brasileiro –, o IV Seminário Estadual de Recaatingamento promoveu diálogos, construções e articulações com base em vivências dos territórios. 

O evento teve como lema: “Sem terra e território não há Recaatingamento” e reuniu cerca de 400 pessoas, entre: agricultores familiares, pesquisadores, movimentos sociais populares, organizações da sociedade civil e representantes de órgãos públicos. As atividades aconteceram no auditório do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), Campus Juazeiro-BA.

O seminário, que aconteceu nos dias 13 e 14 de maio, teve uma expressiva participação de Comunidades Tradicionais de Fundo de Pasto. Essa presença e envolvimento foi importante porque a programação incluiu uma série de debates sobre os efeitos socioambientais já sentidos por comunidades do Semiárido baiano. Inclusive, os impactos causados por grandes empreendimentos em áreas preservadas da Caatinga – como parques eólicos, usinas fotovoltaicas e projetos de mineração – foram apontados como ameaças que têm se intensificado nas últimas duas décadas, ameaçando a existência dos modos de vida e a biodiversidade do bioma.

Para o jovem Alan Souza, da comunidade Barra da Fortuna, em Uauá-BA, a participação no evento é fundamental para pressionar o poder público a assumir um papel mais incisivo na defesa da Caatinga. “A gente vem nessa perspectiva de entender melhor como funcionam essas políticas públicas e também para cobrar um papel mais firme dos poderes públicos – governos estadual, municipal e federal –, para que deem mais importância às ações de recaatingamento e à preservação da Caatinga em pé. Porque se a gente perde esse bioma, perde toda uma identidade, principalmente das comunidades que vivem na Caatinga”, afirmou  o estudante de agroecologia, integrante do Coletivo de Jovens CUC (Curaçá, Uauá e Canudos) e militante do Movimento Pela Soberania Popular na Mineração (MAM).

Alan enfatizou ainda a importância do seminário para reforçar  a urgente necessidade de frear a expansão de empreendimentos predatórios sobre os territórios: “Por outro lado, a gente vem perdendo a Caatinga para os grandes empreendimentos. É por isso que cobramos que os representantes dos governos – principalmente o governo do Estado [da Bahia] e os órgãos responsáveis – fiscalizem e delimitem até onde esses empreendimentos podem avançar sobre nosso bioma.”

Na mesma linha, o professor e liderança indígena Alessandro Tuxi, do povo Tuxi de Abaré-BA, ressaltou a dimensão sagrada da relação entre os povos originários e a natureza.

“Nós, enquanto povo indígena, temos esse compromisso, esse contato de que a Terra é nossa mãe e a natureza é um elemento fundamental para que a gente possa conviver em meio a tantas adversidades. Esses elementos para a gente são muito importantes, porque é da natureza que a gente tira os nossos sustentos, que a gente produz o nosso artesanato, que a gente produz o nosso alimento, que a gente cria nosso bode, cria nossas ovelhas e as nossas galinhas, e que a gente compreende que, sem isso, a gente deixa de viver a vida que os nossos ancestrais viveram. E se a gente não caminhar numa perspectiva de dar continuidade a essa luta, todo esse processo é em vão”.

A pesquisadora Deorgia Tayane Souza, docente da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e integrante da rede colaborativa MapBiomas, apresentou dados alarmantes sobre a degradação do bioma na Bahia. Segundo ela, o estado lidera os índices de desmatamento no Nordeste, com mais de 9 milhões de hectares desmatados detectados pela plataforma.

“Nós conseguimos entender que a Bahia, nesse processo de desmatamento, precisa criar estratégias para que possamos conviver com o Semiárido, reconstruir a nossa Caatinga. E dentro desse processo temos esse espaço de recaatingamento”, destacou.

Deorgia citou pesquisas realizadas no Programa de Pós-Graduação em Modelagem em Ciências da Terra e do Ambiente, da UEFS, que investigam a matéria orgânica e o carbono nos solos em áreas de recaatingamento acompanhadas pelo Instituto Regional da Pequena Agropecuária (Irpaa). Os dados apontam que áreas com mais de 30 anos de caatinga preservada apresentam mais de 25 gramas por quilo de matéria orgânica no solo; enquanto áreas degradadas, sem restauração, registram cerca de 8 gramas por quilo. “Quanto maior a quantidade de matéria orgânica, maior a biodiversidade nos solos e uma maior biodiversidade em toda a superfície da caatinga. Logo, a gente vai ter uma fauna diversa, uma flora diversa”, explicou a pesquisadora.

A professora Flávia de Campos, da Universidade de Pernambuco (UPE), Campus Petrolina, esteve no evento com seus alunos/as do curso de Ciências Biológicas. Para ela, o seminário proporcionou uma valiosa conexão entre pesquisa e realidade local: “Estamos aqui na caatinga e a gente enxerga mais possibilidade de trabalho e de aplicação do nosso trabalho, da ecologia, da conservação. E para os estudantes isso é fundamental, porque a formação deles são possibilidades de trabalho, de estender as trocas e as possibilidades de futuro da caatinga e para as pessoas da caatinga”.

Também presente, a agricultora Delma de Jesus Alves, de Uauá, destacou a importância de espaços como esse para ressignificar a imagem das comunidades tradicionais. “Mostrar o potencial das comunidades tradicionais é mostrar o que a gente tem de melhor; representar o potencial e não apenas a terra seca rachada, a vaca morta, como é colocada nas grandes mídias”.

Por quê uma política pública de Recaatingamento?

Para fortalecer essa discussão e ampliar os olhares sobre estratégias de proteção da caatinga, uma pergunta mobilizou diversas falas e discussões ao longo do evento: por que uma política pública de Recaatingamento? O questionamento abriu espaço para apresentação de elementos que sustentam a urgência de ações institucionais nas três esferas de governo – municipal, estadual e federal – voltadas à restauração e proteção da Caatinga.

Importante destacar que já existe na Bahia a Política Estadual de Convivência com O Semiárido, aprovada em 2016, que também prevê ações de Recaatingamento. Inclusive, a cobrança pela implantação efetiva dessa política é uma bandeira do Irpaa e das demais entidades que atuam na defesa da Convivência com Semiárido. Nesse sentido, uma Política de Recaatingamento também cumpriria a missão de somar às ações enquanto política pública, principalmente com a atualização dos desafios que surgiram e das práticas aprimoradas até o momento.

Durante o painel “Desafios e saídas sobre os cenários climáticos”, o diretor de Combate à Desertificação do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Alexandre Pires, defendeu que a transformação precisa alcançar também a forma de pensar o território: “É preciso, também, recaatingar o pensamento”. 

Para Alexandre, uma política pública de Recaatingamento deve ser pensada como uma metodologia integrada com a vida dos povos do Semiárido. “Não é somente recuperar, do ponto de vista da biodiversidade e da fertilidade do solo, o que é muito importante, mas é pensar numa estratégia de restauração associada à vida dos povos que vivem aqui”.

Pires também avaliou o seminário como oportunidade de aproximação entre governo e territórios. “É uma grande oportunidade para que o poder público possa entender melhor como funciona essa estratégia, essa metodologia, essa abordagem do recaatingamento. E, obviamente, nós temos atenção a essa iniciativa considerando também a caatinga como o bioma mais afetado pelo processo de desertificação”. Ele ressaltou ainda que “Restaurar a caatinga é uma agenda relevante e importante para o enfrentamento às mudanças climáticas e para o combate à desertificação”.

Adriana Sá, presidente da Associação Regional de Cooperação e Desenvolvimento do Semiárido (Arcas), reforçou o papel das experiências territoriais na formulação de políticas públicas. “A gente vem aqui também beber dessa experiência, das várias experimentações que o Irpaa tem trazido, tem feito com os territórios, para também embasar o Estado a construir uma política que ouça a sociedade civil, que olhe para a base, para as experiências que estão dando certo. Acho que a gente avança muito quando faz essa discussão coletiva, a partir também das experiências que buscam essa convivência com o Semiárido”.

Já Edson Ribeiro, coordenador do Comitê Estadual da Reserva da Biosfera da Caatinga na Bahia (CERBCAAT), destacou o Recaatingamento como fundamental para a defesa e valorização do bioma. “Entendemos que a caatinga derrubada, queimada, minerada representa perdas de biodiversidade e solo. O Comitê quer ser esse porta-voz, esse parceiro, juntamente com as comunidades tradicionais, na construção de uma política pública de valorização da caatinga (…) O recaatingamento é essa metodologia em que a participação das comunidades é a garantia de uma caatinga em pé, que reconheça o povo, a mata e toda sua biodiversidade. É bicho, gente e planta”.

O seminário contou ainda com a presença de assessorados/as pelo Projeto ATER Bioma Caatinga, que realizou um intercâmbio para o evento. De acordo com o coordenador do projeto e colaborador do Irpaa, Alessandro Santana, entre outros efeitos, a participação dessas famílias deve contribuir para o fortalecimento do “papel delas como agentes de transformação social e ambiental, garantindo que as políticas públicas em construção sejam enraizadas de acordo com a realidade do semiárido da caatinga e dos seus territórios”.

Ele complementa que momentos como este também podem resultar no “empoderamento e organização das comunidades, principalmente as de Fundo de Pasto, para que elas possam defender seus territórios, estimular a reflexão, a articulação comunitária, a incidência política sobre assuntos de extrema relevância como recaatingamento e os desafios climáticos”. O ATER Bioma Caatinga é executado pelo Irpaa, com financiamento do Governo do Estado da Bahia, através da Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR) e da Superintendência Baiana de Assistência Técnica e Extensão Rural (Bahiater).

Consulta Prévia e Defesa dos Territórios

Outro destaque do seminário foi o momento da apresentação de estratégias jurídicas para a defesa dos territórios, com a utilização da Consulta Prévia, Livre e Informada, prevista na Convenção 169 da OIT. Na oportunidade, a Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais (AATR) e o Irpaa partilharam as atividades desenvolvidas nesse sentido. 

“Não tem como a gente falar de Recaatingamento, de caatinga em pé, se a gente não trata da participação das comunidades tradicionais nas políticas públicas, nas decisões, inclusive os grandes empreendimentos que estão ameaçando os territórios dessas comunidades”, ressaltou a advogada Leila D’Andreamatteo, da AATR.

No Território Sertão do São Francisco, por exemplo, a Comunidade Tradicional de Fundo de Pasto Caboclo, em Juazeiro, já elaborou o Protocolo Autônomo de Consulta e Consentimento; e outras 29 comunidades seguem no mesmo caminho.

Todo o debate ao longo do seminário culminou na consolidação de proposições, construídas de forma coletiva, a partir das experiências, saberes tradicionais e demandas dos povos da Caatinga. Esse acúmulo se transforma agora em uma ferramenta de mobilização, articulação e incidência política, fortalecendo a luta por ampliação das políticas públicas que promovam a Convivência com o Semiárido e impulsionam, de forma concreta, o Recaatingamento, pois como ficou destacado no evento: “Sem terra e território não há Recaatingamento”.

O que é o Recaatingamento?

O Recaatingamento é uma metodologia de Convivência com o Semiárido que promove os meios necessários para a recuperação de áreas degradadas e conservação da biodiversidade da Caatinga, com a participação ativa das comunidades por meio de ações de educação ambiental contextualizada para o fortalecimento do valor da Caatinga em Pé. Como componente da metodologia tem-se a integração de ações ambientais, sociais e produtivas para mitigação dos efeitos das mudanças climáticas e ampliação da resiliência dos povos da Caatinga.

As ações do projeto contemplam ainda a realização de formações sobre Geração de Renda, agregando valor aos produtos oriundos das atividades agroextrativistas sustentáveis, como o beneficiamento de frutas silvestres, a exemplo do umbu e do maracujá da Caatinga. O Recaatingamento também contribui para uma Educação Ambiental Contextualizada – através da Assessoria Técnica e Extensão Rural (Ater) – nas comunidades envolvidas.

Esta iniciativa é financiada pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) através do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (FNMC) e executada pelo Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa). 

Texto e fotos: Eixo Educação e Comunicação do Irpaa

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