“Na agroecologia, a gente trilha o caminho inverso da destruição. Nós marchamos pela vida”, diz Celia Tavares

A agroecologia é uma ciência, uma prática sustentável, que respeita a diversidade, o modo de vida das comunidades tradicionais e das/os agricultoras/es com o território e que se preocupa com questões socioculturais, econômicas e políticas. Assim, a agroecologia tem papel fundamental no desenvolvimento do Bem Viver. Para falar um pouco sobre este assunto, conversamos com a engenheira agrônoma da Bahiater, Célia Tavares, uma das formadoras do Programa FORMATER, coordenado pela Diretoria de Inovação e Sustentabilidade (DIS) /Bahiater, que realiza a formação de agentes de assistência técnica e extensão rural (Ater).

Na entrevista, Celia Tavares fala sobre a relação entre agroecologia, feminismo, direito ao acesso à terra; pontos negativos da Revolução Verde; desafios para substituir o modelo agrícola do agronegócio por um modelo agroecológico, e muito mais.

Irpaa- Muitas pessoas que não conhecem a agroecologia acreditam que ela seja um tipo de agricultura. No entanto, é importante ressaltar que a agroecologia é uma ciência que envolve diversos conhecimentos, para além de sistema ou técnica de produção no campo. Pode explicar o que é a agroecologia?

Celia Tavares– Agroecologia é uma ciência e surge para dar suporte ao processo de transição de uma agricultura convencional que é feita à base de veneno e degradação ambiental para agriculturas que a gente chama de agriculturas de base ecológica, ou seja, em bases sustentáveis. Assim, a gente permite as agriculturas e aos agricultores produzirem sem destruir o ambiente. Mas, a proposta da agroecologia vai muito além dessa questão ambiental produtiva, para fazer de fato a agroecologia, precisamos atender também aos princípios básicos das questões socioculturais, econômicas e políticas que fazem parte do desenvolvimento rural para todas e todos os envolvidos neste processo. A agroecologia é uma ciência abrangente e inclusiva e o desenvolvimento rural sustentável passa por todas essas questões.

Irpaa- Como compreender a relação entre agroecologia e o feminismo? E qual sua relação com outros direitos humanos, a exemplo do direito ao acesso à terra?

Celia Tavares- A relação entre a agroecologia e o feminismo é a mesma relação de coexistência que ocorre em todos os princípios que norteiam a agroecologia. Não podemos nos ater a questão ambiental produtiva e dizer que estamos fazendo agroecologia se não valorizamos a mulher, se não reconhecemos como parte fundamental na transição agroecológica. A mulher descobriu a agricultura, ela fez parte do processo produtivo e do cuidado com o meio ambiente desde sempre. Então, não há agroecologia sem feminismo, assim como não se faz agroecologia sem discutir a distribuição justa da terra. Não se faz sem incluir os jovens nesse processo, sem reconhecer os conhecimentos tão diversos das nossas agricultoras e dos nossos agricultores familiares. Não há agroecologia sem esse movimento social e político. Não há agroecologia sem luta, sem resistência.

 

Irpaa- O termo Revolução Verde é utilizado para designar o processo de transformação na agricultura em escala global que se deu por meio do desenvolvimento e incorporação de novos meios tecnológicos na produção agrícola a partir das décadas de 1960 e 1970. Nos últimos anos, se divulga muito nos meios de comunicação as vantagens do agronegócio “o Agro é Pop, o Agro é tudo”, mas quais são os pontos negativos dessa forma de produção?

Celia Tavares– Revolução Verde, e toda a sua proposta de produzir em larga escala trouxe consigo muitas sequelas. Então, além dos problemas das questões ambientais que são os mais discutidos e evidentes, como: desmatamento, destruição das florestas, contaminação de solo, de água, existem muitas outras questões também de ordem social, política, energética. Houve um aumento na concentração de renda e de terra. A exclusão social, o êxodo rural que é a saída dos agricultores do campo para as cidades, a desvalorização cultural das camponesas, dos camponeses, das mulheres, a exclusão dos jovens nesse processo, o aumento da dependência dos agricultores pela flutuação de mercado. Houve toda uma destruição de uma relação de respeito e harmonia que sempre existiu dos agricultores com a natureza. Então, aquela produção harmônica, saudável e sustentável que acontecia antes da chegada da Revolução Verde correu sério risco de desaparecer com a proposta totalmente diferente do que era feito.

Irpaa- De que forma pode ser “conduzido” o processo de transição agroecológica para o desenvolvimento rural sustentável?

Célia Tavares– O processo de transição como o nome diz é gradual, aos poucos. A agroecologia não é uma utopia, ela é uma possibilidade, é uma realidade, é uma ciência e é verdadeira. Então, vamos mostrando que é possível se fazer agricultura sem necessariamente envenenar o meio produtivo e as pessoas que estão inseridas nele. Trabalhamos a conscientização, as práticas de manejo e conservação do solo, os intercâmbios, os cursos de formação para os profissionais da área, para as agriculturas e os agricultores e fazemos com ele no dia a dia, na assistência técnica e extensão rural rumo à sustentabilidade. E o papel dos agentes de Ater é fundamental nesse processo, é muito difícil fazer a caminhada de volta sem uma assistência técnica realmente agroecológica.

 

Irpaa – Quais são as principais políticas públicas de apoio ao desenvolvimento da agroecologia e quais são os desafios dessas políticas?

Célia Tavares– Nós temos algumas políticas públicas que ajudam no processo da transição agroecológica. Nós temos o Pronaf-Agroecologia, nós temos o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) e o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) que privilegia a compra dos alimentos pelas agriculturas e pelos agricultores familiares que produzem. Nós temos as políticas, a PNATER (Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária) que versa sobre uma Ater agroecológica, a gente tem a lei da agricultura familiar, tem a lei de orgânicos. Temos a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica que preconiza a articulação das políticas e dos programas do governo em prol do desenvolvimento rural sustentável. Nós temos a lei de segurança alimentar e nutricional que preconiza alimentos de qualidade em quantidade para todas as famílias.
As políticas, as leis, os programas existem, mas será que isso basta? Eu acho que é importante dizer que as políticas públicas voltadas para a agroecologia dependem do reconhecimento dessa importância pela sociedade. E a sociedade somos nós. Nós demandamos ao governo a manutenção e ampliação dessas políticas ou não, isso depende de nós enquanto pessoas integrantes de uma sociedade, isso depende de nós, da agroecologia enquanto o movimento social que somos.

 

Irpaa – As mudanças climáticas afetam os regimes de temperatura e chuvas, que comprometem a segurança alimentar tanto local quanto mundial. Nesse sentido, os princípios da agroecologia podem colaborar com a redução dos impactos das mudanças climáticas?

Célia Tavares– Com toda certeza. As atividades agropecuárias estão diretamente ligadas às questões climáticas. Todas as práticas agroecológicas vão na direção da preservação e todas as mudanças climáticas negativas que estão acontecendo estão ligadas à degradação A derrubada das florestas, o desmatamento, o uso intensivo de energias não renováveis como o petróleo, o carvão mineral, a poluição do ar, das nossas fontes de água. Essas ações influenciam fortemente nessas mudanças negativas que a gente vem sentindo ao longo dos anos. E na agroecologia, nós buscamos plantar com a maior diversidade possível. Sem desmatamento, sem queimadas, não fazemos uso de poluentes, de venenos, a gente trabalha as fontes de energias limpas e renováveis. Enfim, a gente trilha o caminho inverso da destruição. Nós marchamos pela vida.